sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Papai Noel está morto

Foi do marido a idéia de não contratar um Papai Noel profissional. A escolha caiu, mais uma vez, no tio Alcindo. E mais um ano, ele estava atrasado. Na sala, a gorda lista de convidados trocava copos e sorrisos, impacientes com a espera. Todos aguardavam a sua chegada: as crianças inquietas, quase meia-noite, hora de revelar os presentes, cortar o peru, abrir a champagne, brindar. E nada do tio Alcindo. Depois dos pequenos, a dona da casa era a mais preocupada - nada poderia dar errado naquela noite de Natal, planejada durante meses por Vera.
Olhando a expressão dos convivas, Vera decidiu ligar. Chamou, ninguém atendeu. Papai Noel esquecera o telefone em casa, ou não carregara junto, muito atrapalhado o tio Alcindo. Ano passado foi a mesma coisa: chegou em cima da hora, trazido pela empregada, sorrindo, bonachão. Agora ela está ali - ansiosa. Tudo pronto, todos esperando, e Papai Noel não chega.
A preocupação fazia a dona da festa caminhar impacientemente de um lado para o outro, percorrendo peças, conferindo detalhes, como se procurasse alguma imperfeição, falha escondida ou deslize - mas faltava Papai Noel, era isso. Sorria para os convidados, dizendo em voz baixa para si mesma, arrependida, que já deveria ter pedido para De Lourdes trazê-lo.
Lembrou de ir ao quarto da empregada, onde andaria? Entrou decidida a pedir que ela fosse atrás de Noel, talvez o tio estivesse perdido num bar, conversando com algum vizinho, esquecido, quem sabe esperando na rua. Sabe-se lá: o velho era de aprontar com a família.
Abriu a porta no instante em que De Lourdes terminava de pôr a saia.
No canto oposto da minúscula peça, deitado na cama, de touca e cueca, mão no peito, a outra caída para o chão, Papai Noel estava morto.
Assustada com a presença repentina da patroa, os olhos esbugalhados, a empregada repetia:
- Morreu do coração, morreu do coração!

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Árvore Branca

CRÔNICA DE NATAL
A árvore de Natal perfeita é a branca. Nos meus sonhos ela é branca, reflexiva, iluminada. Em si comunicando a calma túmida e cristalina da neve. A minha paixão natalina é uma árvore enterrada em neve, folhas, galhos, tronco, tudo em branco. Mas é um sonho. Sim, porque chega a época de Natal e é sempre a mesma coisa: todos preferem o verde profundo, para mim pouco comunicativo, escuro demais.

Na casa de minha mãe nunca pude decidir a cor da árvore, e os pinheiros de natal sempre foram bastante coloridos. Chegava dezembro, lá estava montado o cantinho dos presentes, a árvore, os enfeites de todas as cores. Era um tumulto de vermelho, verde e dourado. E luzes – muitas luzes - minha mãe adorava iluminar o pinheiro, mas não gostava do branco, dizia que era enjoativo. Montava o “pinheirinho” – nome carinhoso que dávamos a ele – e ficava mais enfeite do que verde. E luzes. Eu ficava fascinado pela comunicação das lâmpadas, o pisca-pisca, o acordo feito entre elas para brilharem, cada uma de uma vez. Eu dormia tarde só para ver as luzes da casa apagadas e a sala luminosa, piscando. E depois que minha mãe desligava tudo, a sala voltava ao normal, uma escuridão que existia durante o ano todo.

Chegava Natal, e tudo era luz. A intermitência das luzes piscando nos olhos do menino que fui. Sentado num canto, olhando aquela árvore e o excesso de brilho e cores. Fascinando, procurando o branco. Olhando aquelas cores todas e imaginando uma árvore cheia de flocos de neve. O branco: a soma de todas as cores. Nas lojas, quando saía, eu procurava as árvores brancas, e elas sempre se destacavam na paisagem das vitrines; um tanto estranhas naquele mundo colorido das festas de final de ano: o verde, o vermelho e o dourado repetindo-se de maneira incessante, monótona. O branco reflete intermitências.

De criança, ficou o costume: todo ano eu visito as lojas que vendem temas para o Natal. Fico lá, olhando, imaginando levar para casa o monumento à neve recém caída, montado, grandioso, dominando a cena na vitrine. Feito uma majestade siberiana, eis a árvore dos meus sonhos. Eu só queria colocar um pouco de luz na minha infância.

Chego, e na sala ela está imponente: a grande árvore verde. Nosso filho ajudar a montar.

Na nossa casa, a sala é bastante clara e iluminada, as janelas são grandes, o piso é marfim, as paredes são brancas, lisas, espaços a serem ocupados, e mesmo os móveis, eles estão em harmonia com toda essa claridade, quebrada, de leve, por um quadro colorido ao centro. Acredito que seja por isso que ainda não consegui convencer ninguém aqui em casa de que uma árvore de natal branca ficaria espetacularmente bela.

Muito claro.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Instante-momento


O gosto do Tennesse na boca. Alamedas, corredores, galerias. Chego. A porta indicando com precisão o lugar da celebração. Escoro-me na porta – ela é a passagem definitiva, depois que cruzar por ela a pessoa que está ali – o motivo pelo qual aqui me encontro – ela será outra, e nada será como antes. É apenas uma porta, sei. Foram tantas portas, passagens, hotéis, bares e restaurantes, nas dezenas de milhas percorridas, viagens que fizemos juntos, num agrado etílico que explode em meus ouvidos porque ouço alguém (sussurro) explicando o estado anímico dela neste instante. Jordana agora está ali: deitada, definitiva. Sombra silenciosa envolvida em cores e rendas que desconheço. Um quase nada, ela; há poucos meses ainda vivíamos a descoberta de nossa especialidade; hoje, um fio do que fomos – risco indefinido que vejo longe, aqui desta porta, lá no centro da grande sala. Estou parado e tenho diante de mim um ambiente silencioso e de poucas palavras, e nesse momento estou temeroso de dar os poucos passos que me separam do assento final. Basta entrar, caminhar um trecho, depois cumprimentar um a um os familiares (sempre respeitosamente), olhar Jordana ainda uma vez, depois recuar (duro desejo) sumir. Lembranças. Os passos desse relato interno são lentos. Um retardo proposital na memória. Como se lembrar fosse aqui um pecado – extermínio – tantas coisas deixadas para trás, tantos sonhos. Então paro. Falta a determinação de chegar mais próximo para a última homenagem, pois sei que estou sendo vigiado pelo olhar circunspecto e distante dos familiares que ainda não conseguem explicar o que aconteceu com Jordana, tão jovem.

Entro na sala. Caminho mecanicamente, contando os passos dispostos na exposição de uma mesa de bar, olhando o embaralhado dos copos como se procurasse um ponto neutro na parede branca. Continuo caminhando dentro de minha estupidez – a de lembrar agora daquela campanha publicitária que tanto me atraía: da bebida que era um símbolo de poder absoluto para nós. Agora tudo reduzido àquele metro e meio de comprimento e sessenta de largura... Preciso chegar lá. O prumo, a imprecisão, contudo, torna o trajeto impossível. Cambaleio. Levanto a cabeça orgulhoso. A altivez da civilização norte-americana dos rótulos e do tempo de maturação adequado me envolve, pensamento que entorpece e produz essa luz adocicada, de cor indefinida. Suspiro, tomo ar, respiro, associo o caminho aos momentos vividos juntos, a certeza conjunta desse instante. São poucos passos até o encontro final.

Toco a madeira. Sua cor tem a consistência viscosa e líquida de duas horas sentado no bar do outro lado da rua, onde, trocando o copo pelo movimento dos corpos, eu afundei. Os dias vividos. Um dia ela me disse numa mesa de bar que logo-logo estaria envolta no definitivo. Horas atrás, eu abraçava essas lembranças, tentando recordar em que momento Jordana tornara-se a imagem perfeita de tudo. Agora uma tampa de vidro nos separa. Então espero, e a minha mão é o único elemento que garante equilíbrio no instante em que dou o último passo. Paro.

Espero o instante-momento. O passo final. A descida de cabeça que revolva dentro de mim anos e anos de excessos, o gosto definitivo do Tennesse a cruzar nossas bocas, a minha boca, hoje, ainda ontem, agora pouco, sempre.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

O Bico do Pato

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA


Na primeira partida que o Sport Club Internacional jogou pelo Torneio Mundial de Clubes da Fifa, realizado no Japão, duas foram as certezas com que fiquei: a primeira é de que goleiro não pode comer (goleiro não pode nada!), e a segunda, mais absurda ainda, de que Pato tem o bico em outro lugar. Levanto essas duas proposições não porque eu queira explicar o jogo – troço chato –, e muito menos porque esteja interessado em levantar polêmica – outro troço chato -, mas sim porque para mim o jogo de futebol é como uma brincadeira, um evento absurdo, carregado de dramas e especulações, mesmo que muitos o tenham como algo sério (principalmente os que ganham dinheiro com ele). Mas como acreditar que o técnico colorado é sério quando ele deixa no banco pelo menos dois titulares: o goleiro Renan e o volante colombiano Vargas. Absurdo.

Alexandre Pato, a nova revelação do clube, é titular incontestado, deste e de qualquer outro time. Pelo menos isso aconteceu em Tokyo – ele jogou uma bola redonda; até onde pôde, é claro, pois se levarmos em conta a desorganização intestinal do time, ele jogou um partidaço. O gol que o atacante Pato marcou está lá, gravado nas câmeras do mundo inteiro, a mostrar, a nós e ao mundo, que ele tem categoria. Uma promessa para os corações colorados, tão acostumados com tragédias e decepções coletivas.

Levantei, contudo, o primeiro problema que constatei no jogo de hoje porque sempre fico preocupado com o goleiro (esse meu humanitarismo com o guarda-metas às vezes cansa o leitor): o problema de que o goleiro não pode comer. Para ser mais preciso, goleiro não pode nada: nem caminhar feito lorde, nem voar pelo espaço sideral, tampouco ver estrelas, filosofar, qual o sentido da vida?, essas coisas. Essencialmente, o goleiro não pode perder a concentração no jogo. Clemer, o Contestado, fez no Japão novamente das suas: uma defesa cinematográfica alternada com uma trapalhada. Como um banhista que assoma à praia, como alguém que está entrando numa piscina de bermudas e chinelo, alguém fora do jogo, portanto, Clemer, no momento do gol sofrido, voltava tranqüilamente para sua área como alguém que estivesse em férias: de costas não viu a rapidez da reposição de bola, nem o cruzamento e muito menos a cabeceada ridícula do atacante egípcio no meio do gol que o pegou adiantado. Por isso digo que goleiro não pode fazer nada de diferente – caminhar na praia nem pensar.... Com o gol sofrido (o empate do time egípcio), Clemer e a defesa colorada inauguram a fase Tarkowskiniana da partida: "O Sacrifício". Nossa defesa deveria jogar no Dallas Cowboy.... Futebol americano, fique claro.

Foi preciso que o atacante colorado, Alexandre Pato, além do gol, tivesse um momento de magia durante a partida, e num lançamento mais longo, em profundidade, pela ponta direita, conduzisse a bola dando três bicada com o ombro na bola, e um toque de letra com o tornozelo direito, levando-a colada junto ao corpo até a linha de fundo. Uma jogada de mestre, um lance que valeu a partida; um toque cinematográfico de mestre – o "Esplendor" de uma projeção que vira artista – um brilho eterno de uma mente sem lembranças – esquecer o goleiro – que agora me faz lembrar que talvez o bico de Pato Alexandre esteja localizado em outro lugar.
Talvez no ombro.

Porto Alegre, 13 de dezembro de 2006.