terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Uma Porta de Rancores

Um alívio foi quando aquela porta se fechou num zás e ele entrou no carro, o calor da rua ficando para trás, o bafo do início da tarde, suor descendo pela camisa, o verão, um mundo lá fora lhe esperando vivo e alegre e a dona Cleide, sua chefe no escritório, apenas lhe incomodando com tarefas ridículas. Aquilo sim era legal. Trabalho na rua. Rudinei entrou no táxi, bateu a porta e deixou a importância das coisas para trás. Numa sala fechada.

Um pouco antes, aí pelas duas horas da tarde, veio a notícia. Um serviço urgente na Zona Leste solicitado por um cliente da firma. Serviço de rua. Longe da pressão diária dos papéis e fotocopiadoras, dos cafés solicitados repetidas vezes, todo mundo lhe pedindo pequenos trabalhos absurdos, faz isso, traz aquilo, corre Rudinei, vem logo. Sai eufórico do edifício comercial onde trabalha, corre até o ponto de táxi mais próximo como se estivesse saindo de férias para Acapulco. É raro algo assim acontecer no seu dia de trabalho, e a empresa só paga a condução luxuosa quando é preciso urgência. Para ele, pouco importa a pressa, ou trabalho a fazer, apenas o consolo: serão trinta minutos de ar-condicionado. Pelo menos na ida, sabe disso, pode ir de táxi; na volta, a ordem é economizar. Conseguirá evitar, na ida, aquele cansaço morrinhento provocado chacoalhar das aglomerações coletivas que viajam nos ônibus lotados. Um alívio, esse trabalho.

O carro de praça ele escolheu a dedo. Está perfeito, do jeito que gosta: motor potente, carro do ano, o painel brilhando, bancos estofados, tudo limpinho, convidativo. Ao entrar no táxi, o cheiro gostoso de algo novo lhe envolve, ao mesmo tempo em que a pureza do ar refrigerado traz uma brisa feita de ondas suaves que lhe provocam alívio no instante em que entra no carro. Dentro o silêncio das janelas fechadas.

Espera a pergunta, ela não vem. Só então resolve olhar o motorista para lhe dar a direção, o destino. Ao virar, choca-lhe o rosto cansado do outro. Logo percebe a quantidade de horas não dormidas. Rudinei tem um tio taxista e sabe que eles trabalham durante horas e horas sem largar a direção, viram a noite, atravessam esse mar de carros, circulando pelo mormaço que faz na cidade, esse inferno, asfalto quente, enfrentando a ferocidade dos outros condutores. O motorista não diz nada.

O silêncio fez-se total desde então. Rádio desligado, motor silencioso, o mundo rodando lá fora em imagens rápidas, borradas. Apenas freadas bruscas, sinais, buracos, buzinas. A cidade. Ao seu lado, feito pedra, mineral estático, o rosto do motorista lembra uma rocha dura embrutecida, aspereza que Rudinei também vê pela janela quando passam próximo a um canteiro de obras: o barulho ensurdecer das máquinas fica lá fora, e o rosto do operário da construção civil que pára para olhar o rapaz que vai de táxi é tão assustador como o do condutor. Dentro do carro tudo é silêncio.

Seguem assim. Os dois não conversam durante toda a viagem. Rudinei, o contínuo, sente o peso do ar, ele muda. Não consegue entender como o conforto interno proporcionado pelo ar-condicionado não deixa o taxista à vontade. Então decide olhar pra frente, pra rua, esquecer o mau-humor manifesto pelo motorista. Mas não consegue – num impulso tenta uma conversa e recebe o vento seco e árido de uma pergunta qualquer:

- Dobro aqui?

Eram pedras rolando no abismo, a pergunta. Respondeu, sem olhar fez que sim, nem se virou. A partir daí, Rudinei silenciou. O táxi já não lhe parecia tão confortável, de dentro brotando um cheiro enjoativo de coisa nova misturada ao perfume indefinido do motorista, o sujeito que ia impávido ao seu lado, reagindo de tanto em tanto apenas quando alguém vinha lhe tomar a frente – então ele buzinava. Chegando ao destino, Rudinei pagou sem olhar para o outro. Desembarcou. Uma repulsa percorrendo seu estômago, subindo pela garganta, vontade de vomitar, o braço pesado, a mão firme batendo a porta do veículo com uma violência que não condizia com seu estado inicial, meia hora atrás, na partida.

O motorista baixou o vidro e gritou:

- Não bate muito senão ela não abre da próxima vez.

Um ódio nos olhos de Rudinei.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Residencial das Jardineiras


Sentados no amplo pátio carregado de amendoeiras, jacarandás, cercado por um muro branco, dentro do qual enormes bancos enfileram-se ao lado de grupos de roseiras simetricamente plantadas, ao fundo das quais se vêem andadores espalhados pelos cantos e vielas, dois senhores estão conversando um de frente para o outro. Encontram-se ali desde o início da tarde, ficaram para trás, todos entraram, hora da janta, permaneceram ali atirados em devaneios, um longo tempo pousados, espraiados, esperando mais um dia que cai, um corpo, quem sabe a tarde morrer, num ato, num átimo, um pedaço de fim de tarde visto de esguelha pelas vidraças do casarão; os dois estão ali amarrados ao tempo, jogando conversa fora, feito folhas avulsas caídas ao chão, essas que agora insistem em cobrir o grande terreno do pátio interno dos fundos. Conversam com a calma dos anos. Sabem que não há pressa aqui nesse lugar, tempo não é o problema no Residencial das Jardineiras. Alberto está falando. Conta sua história a Guilhermino, colega de quarto há 15 anos. Fala de um passado glorioso, cheio de floreios, riquezas e desimpedimentos; fala da liberdade de sonhar e voar. O outro lhe interrompe:
- Com tanto dinheiro, como vieste parar aqui, Alberto?
Demora na resposta, e como se estivesse criando um suspense fica remexendo a velha dentadura de um lado para o outro. Os movimentos externos são calculados, nobres, bastante lentos, um círculo que se levanta no braço para dizer:
- Esse bairro, veja, tudo isso já foi da nossa família. Vendemos, dividiram tudo, meus filhos foram para longe, multiplicaram tudo, um mora no exterior.
Fica olhando as folhas no chão que a brisa ocasional desta tarde insiste em remexer. Silêncio. Cortado pelo grita de alguém que diz: está na hora do remédio. Continua falando:
- Gente com muito prestígio, lá em Minas, sabe...
- Nunca vi eles te visitarem – interrompe o outro.
- Sabe como são os filhos... Deixam a gente aqui. Mas não guardo remorso, tenho muito orgulho deles, das empresas que eles criaram em...
- Diz o nome de uma – a voz sua Guilhermino lhe corta o pensamento.
- Não incomoda, velho chato, deixa eu terminar o que estou dizendo. Como era....? Sim, Paula, minha filha mais nova. Reitora em Goiânia.
- Não era Minas?
- Minas, certo, Minas Gerais. Não, ela é Reitora da Universidade do Pará.
- Espera, Goiânia fica no estado de Goiás!
- Você sempre atravanca o meu raciocínio, Guilhemino. Larga dessa mania tola.
Parado na grande porta que dá acesso aos fundos, o enfermeiro grita:
- Hora do remédio, Seu Alberto. Já passou da hora.
Enfastiado com a interrupção do encarregado, ele resmunga:
- Nunca deixam eu contar minha história até o fim.
Levanta. O povo lhe aclama das galerias, depois da posse. Um contrato de compra e venda com enormes cifras cruza à sua frente, assina. O recorde estadual de natação foi batido, alguém lhe diz. A bela e jovem Mortágua coloca sua mão no joelho, uma seda, folha seca jogada ao chão, delicada. No colégio a professora Tânia diz que ele será um grande orador, um lindo texto Alberto. O pai, lembra que deixou o velho num pensionato quando completou setenta anos, não precisava.
Levanta muito rápido, cai.

Elisa

Por que razão as palavras me parecem tão tristes e frias?
Será porque não existe palavra bastante suave para ser teu nome?

James Joyce

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Esquecimento


A combinação, ele fez consigo mesmo diante do espelho, no primeiro dia de férias. Estava fazendo a barba há quase vinte minutos quando chegou à formulação definitiva da teoria. Esconderia um item de sua lista de viagem atrás da grande árvore de Natal; deixaria ali, no silêncio da sala fechada, o objeto do seu desejo. Seria este o seu único esquecimento no início da folga prolongada de verão, quando a família arruma tudo e sai de casa correndo, como se estivesse fugindo de uma catástrofe. Levam tudo para a praia, mas alguém sempre esquece de algo.

Dizia tudo isso ao espelho. Seu hábito nos últimos anos: conversar sozinho, parado, de pé no banheiro, o único lugar onde ninguém podia lhe incomodar. Sobre a combinação deste dia – era imprescindível – a esposa de nada saberia. Era uma temeridade dividir algo assim com ela – dizia para si mesmo, em voz baixa - a escolha do que deixar. Nem quer lembrar como fora no veraneio passado: esqueceram dois itens (dois!), e por acaso um deles era o creme anti-rugas da mulher que lhe custara uma pequena fortuna. A esposa não perdoou o descuido, e ficou o resto das férias sem conversar com ele. Um tormento aquelas dias. Aumentado pelo mau tempo, que dominou a cena no balneário capixaba – choveu o mês inteiro – as chuvas de verão mergulharam a praia na baixa temporada. O uso do creme, isso lhe foi dito várias vezes, não dependia de tempo bom.

Esquecera também o guarda-chuva, lembra ao reflexo que tem diante de si: um homem com a barba perfeita. A mesma peça que agora a pouco escondeu nas sombras do pinheiro, num lance rápido, enquanto todos estavam distraídos arrumando suas coisas. Nunca poderia imaginar o quanto faria falta o creme da mulher, e muito menos o guarda-chuva.

Sua teoria era simples. Ao final, de volta ao banheiro, disse para si: esquecendo-se uma coisa de propósito, é bem provável que pelas leis universais das probabilidades absurdas, nenhum outro item mais importante seja esquecido. Repetir a explicação diante do espelho o deixava mais tranqüilo. O problema é que não encontrava o segundo item. Onde estaria?

No quarto, ao lado, a esposa concluía a arrumação das malas. Cinco ao todo, uma para cada um, ali ordenadas e alinhadas numa precisão germânica, desprovidas de qualquer superficialidade e prontas para serem carregadas. Fazia o trabalho sozinho para que as filhas não dessem palpite ou mexessem em suas coisas. Correndo de um lado para o outro até a hora da saída, ficou alheia ao que acontecia no banheiro. Sua representação era outra. Preocupada em garantir que nada faltasse à família, ela gritou:

- Antônio, vê se não esquece de apanhar o guarda-chuva. Vai que chove este ano de novo.

Desolado, ele pergunta ao espelho:

- Que será que vamos esquecer desta vez, Antônio?

Carregou a caminhonete. À hora marcada, todos a bordo, seguiram viagem.

Duas horas rodando pela estrada, Antônio inclina o espelho retrovisor interno em sua direção: sorri para si mesmo. A pergunta. Numa voz quase inaudível para que ninguém ouça, ele se pergunta como poderá explicar para a esposa, quando chegarem, o fato de ter esquecido seus apetrechos de barbear? E mais: como foi esquecê-los justamente debaixo da árvore de Natal?

Examina a parceira ao lado. A mulher está sorrindo. No colo dela, o pote do creme aberto indica que ela o está usando naquele momento – seu rosto parece um abacate partido ao meio, o nariz um caroço. Ela não desvia os olhos do pequeno espelho que trouxe na bolsa, seu companheiro inseparável, objeto inacessível à curiosidade das meninas, estas que não param de brigar no banco de trás. Falando baixinho, e sem desviar os olhos de seu objeto de desejo, a esposa comenta:

- Esqueci de passar o creme em casa.