terça-feira, 28 de agosto de 2007

Restinga Seca

Sentados, estão um de frente para o outro. Na bagunça imperativa e anárquica da pequena peça de passagem, esta é a única ponta de organização séria que se pode enxergar: o olhar dos dois, lacrado pela batida da porta. Iluminados pela fraca lâmpada amarelada desta embarcação típica de solteiro (a sala do apartamento), eles têm o olhar fixo um no outro. Estão no lugar sagrado – o ponto de encontro da turma. Sentados, buscam entender um pouco essa religião, o silêncio árido desse mútuo estudo. Um deles está boquiaberto, atônito, a se perguntar: Como ele sabia? Neste dia confuso e mais uma vez inanimado, acontecimentos estranhos estão remoendo Diego por dentro, feito metástase, porque ele quer saber como pode, como poderia ser assim. Mas ele não faz a pergunta. Apenas se olham, parados, respirando apertado o ar seco ao redor deles. Esta sala guarda o segredo de uma porta fechada.
Até ali, um longo caminho. No dia em que ele anunciou aos amigos que a garota que conheceu em suas andanças pelo mundo virtual, enfim, viria, a única coisa que importava era a hora. A chegada. O encontro marcado, depois os contatos, as trocas de elogios, as fotos enviadas pela rede mundial de computadores que davam a Diego aquela certeza: ela era linda. Agora, sentado diante do amigo, sua cabeça tem um certo quê de desconfiança, a pensar se tudo que aconteceu talvez não tenha acontecido. Algo fora do lugar, mas ele apenas queria encontrar a loira que conheceu pela internet; que disse que tinha origem alemã, que morava em Restinga Seca, e que era louca para conhecer a capital, estudar, fazer faculdade, morar sozinha. E foi assim que certo dia ela anunciou que viria à cidade passar a noite sozinha com ele no apartamento. Combinaram que nesse dia ele a apanharia na rodoviária. O amor de sua vida chegaria no ônibus das cinco, e de lá um táxi e depois a corrida até o grande sofá da sala, palco de tantas sessões solitárias de amor próprio diante das telas. A sua religião.
Na sala, os dois permanecem (ainda estão se olhando). Diego está com a pergunta pronta; aliás, é como se já estivesse com a mão levantada, bom aluno, e pedisse licença para perguntar ao amigo: Como?
No final da tarde deste dia, contudo, sua expectativa era outra. Diego estava radiante. Parado no terminal de desembarque dos ônibus do interior, ele buscava aquele que mostrasse no luminoso o letreiro da felicidade - o nome da cidade de onde via o seu grande amor. Restinga Seca. Onde ficaria Restinga Seca? A pergunta ele se fez enquanto caminhava de um lado para o outro, esperando descer o último passageiro da condução que chegara às cinco em ponto. Mas nem sinal dela. Ninguém que se enquadrasse na descrição dos atributos, nos atributos propriamente ditos; ninguém que estivesse à altura de seus sonhos, os sonhos que ele conhecia muito bem. Estranhou apenas o fato de ela aparecer de repente, lá mesmo, na plataforma de desembarque, para dizer que havia chegado na viagem anterior, antes da hora. Foi o primeiro silêncio do dia.
No caminho, as palavras constrangedoras de quem recém se conhece:
- Fez boa viagem?
Agora, estão no apartamento, ele e o amigo. Estão no santuário. No mesmo lugar onde, minutos antes, ela batia a porta com toda a força, enquanto anunciava a partida dizendo que não, não ficaria ali mais nenhum minuto. Procuraria um hotel, outro lugar, sabe lá. Tales, o amigo parado à sua frente, viera para conhecer a surpresa do interior. Apareceu, tocou a campainha, esperou; abriram a porta. Quando entrou, Tales reconheceu-a, e de um jeito todo íntimo foi dizendo um Oi, Mari, você por aqui? Como se houvesse entre ambos uma intimidade de horas, de dias, longas conversas em mesa de bar. Como se os dois tivessem saído de uma noite de prazeres etílicos, mas não; Tales havia chegado ao apartamento pouco depois dos enamorados, quase nada foi dito, e agora os amigos estavam sentados no silêncio em que se transformou o apartamento depois que ela partir e uma porta se bateu atrás deles.
Diego está decidido a perguntar como ele a conhecera, mas desconfia que a amizade entre os dois seja mais antiga, aquele olhar ele conhece, é melhor deixar assim, a vida continua.
- Vamos ao jogo domingo?

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Páginas Amarelas

No dia em que, mais uma vez, William procurou companhia em sua coleção de revistas, notou que as melhores páginas já estavam grudadas, amareladas pelos usos e costumes de seu dono e senhor. Algumas fotos estavam inacessíveis, as mais belas, quero dizer. Então ele devolveu a coleção para o armário, suspirou fundo, apagou a luz e foi dormir.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Fandango

Olhando de onde me encontro agora, sinceramente, não consigo entender o que estou fazendo aqui, neste fandango. Está certo que a decisão de acompanhar esse grupo de turistas para que conhecessem as danças folclóricas do lugar foi minha. Agora que o show encaminha-se para o fim, vejo que ao lado da euforia de alguns vegeta a lentidão de aquário de outros, tal o tédio dos gestos. Para dizer a verdade, depois de duas horas, estão quase todos atirados nas cadeiras, misto de cansaço e decepção. Como se esperassem apenas o momento derradeiro: café, a conta e o fim. É quando olho para o canto do salão e encontro aquele monumento ao grotesco. Um homem nos seus quarenta e tantos anos baba as mágoas num copo de cerveja ordinária; desequilibrado na sua solidão, ele traz preso à outra mão uma câmera fotográfica. É um objeto extraviado no meio desta apresentação. De repente ele se vira, olha para mim, faz um sinal característico, vem e me pede algo.

Demorei, e foi só agora que percebi o sujeito inoportuno, parado aí de pé ao meu lado: ele não tira os olhos do rodado. Credo! Já foi um suplício participar do show, todas as noites a mesma coisa: este vestido horroroso cheio de bordados, esses turistas beberrões, suas inconveniências... Só porque pagam (e pagam muito bem) para assistir ao espetáculo dançante de música tradicionalista pensam que têm o direito de pedir qualquer coisa – e não podemos negar. É o nosso trabalho. O desagradável é que, mesmo cambaleante, ele está decidido a pedir de novo. Toda semana o mesmo enredo furado. Adivinho sua intenção, não há nada mais previsível. Logo ele chama alguém da mesa dos gringos e lhe pede para que saque uma foto sua, de pé, no meio de nós duas, as prendas. Chega pisoteando a minha bota, fede a cerveja morna, realmente desagradável, e é um esforço imaginar que aquilo que traz estampado no seu rosto seja um sorriso.

Sei que não é fácil aparentar solidão. Talvez seja por isso que sempre trato de ficar misturado aos excitados, os turistas de ocasião. Fico no meio deles, disfarçado, e isto é relativamente fácil: primeiro porque tenho comigo uma máquina fotográfica a tiracolo, depois porque faço cara de idiota e me aproximo do grupo eufórico. Mas aquilo não me contagia. Eles entram sorrindo, pedem tudo, pagam alto e depois ficam pulando a noite toda fora do ritmo, no meio do salão. Abobalhados, ficam assistindo ao show que eu já conheço de cor; no final, aproveito o lugar quieto onde fiquei para me aproximar dela. Não está sozinha hoje. Ao seu lado, outra dançarina, colega de palco. Aproximo-me delas, flutuando nas graças da minha condição adquirida. De pé, aguardo o momento de pedir a elas para tirarmos uma foto juntos. Conseguir alguém que bata a foto não é difícil. Qualquer otário está disposto de fotografar mulher bonita. Então sorrindo, abraçado e já meio largado no meio delas, finjo a satisfação dos que têm passagem curta.

Da portaria, vejo todo tipo de gente circular por aqui. É um pé-no-saco atender à felicidade alheia. Mas é o meu trabalho. Fico enjoado com o humor dos brindes à base de espumantes, a falsa euforia dos convivas. O sujeito ali parado me chama a atenção. Deve ter algo em torno de quarenta e cinco anos, veste roupa de fim de semana, tem o cuidado dos ansiosos. Toda quinta vem aqui, escolhe uma mesa, o resto da noite sozinho; depois se aproxima das meninas. Sempre dá um jeito de chegar perto de Camila, a estrela da noite. A prenda nem lhe dá atenção, mas acho que ele não liga mais para isso, pois fica ali do mesmo jeito, imóvel, acabrunhado num canto. Fica esperando. No final da noite – também já percebi - ele se mistura aos turistas só para pedir um retrato com ela. Noto que a garota não liga para esse detalhe, e faz o jogo dele. Só o que me deixa curioso é a fotografia: sempre a mesma. Semana após a outra, o mesmo olhar triste estampado no rosto, gerando ondas de indiferença, espécie de insatisfação que amolece o colorido do vestido, apaga o brilho das luzes ao redor, deixando ainda mais pálido o rosto a essa altura já suado da nossa melhor dançarina. Ele nem se importa, agradece, vai embora.

domingo, 12 de agosto de 2007

Muro

CRÔNICAS A MEU FILHO
É hora do almoço. Sentados à mesa, eu e a cozinheira estamos esperando meu filho. Ele chega correndo. Ao sentar, espicha o pescoço, olha firme o grande prato ao centro da mesa e logo pergunta para ela o que teremos de comida hoje.

- Carreteiro.

Eufórico, ele olha para mim, e fazendo um hum-hum me diz:

- Vai ter que comer carne, pai.

Com a expressão de alguém que perde uma batalha, tento dizer:

- Soubesse disso teria aberto uma lata de sardinha.

Em seu combate imaginário, meu filho não perdoa:

- Sardinha!? Eca! Acho que eu vou construir um muro aqui no meio da mesa.

Durante o almoço, fico pensando nos muros que eu gostaria de ter construído ao longo da vida.