sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Gotas de suor descendo

CRÔNICAS PARA MEU FILHO

O meu filho de seis anos está brincando com o pequeno Guigo – seu amigo de Florianópolis com quem se encontra alguns dias do ano nos verões quentes da Ilha da Magia. No meio da brincadeira, o astuto Guigo resolve fazer perguntas sobre a namorada que Mateus diz ter em Porto Alegre. Interrompe tudo, gira no próprio eixo, depois puxa Mateus para um lado e com suas delgadas mãos ele pressiona o rosto de meu filho, agarra firme. A pergunta está pronta, a presa está em suas mãos, mas falta um detalhe. É o olhar, tem que ser duro e direto, o tirocínio de buscar uma contradição na resposta do meu pequeno. Então, com as duas mãos sempre firmes, ele diz:
– Como vai a Adriana?
Inquieto, Mateus responde num estouro de voz:
– Não é Adriana, é Mariana, Rodrigo, quantas vezes eu já te disse.
Ele volta à carga:
– Já beijou a Mariana?
– Ah, Rodrigo...
Vejo um sorriso rápido se abrindo no rosto do intrépido questionador. Tem a partida nas mãos, quero dizer, o rosto do meu filho preso na palma das mãos, e a certeza de que conseguiu embaraçá-lo de verdade. Impiedoso, rápido, e virando para mim o seu rosto matreiro de quem já tem quase dez anos na escola da esperteza, ele não perde tempo:
– Viu como ele ficou nervoso? Escorriam gotas de suor da cara até o pescoço.
Fico preso, junto com meu filho, ao olhar intenso do guerreiro que temos diante de nós.
Guigo dá uma risada, esta é mais curta, porém muito mais cruel e segura de si.
Ele sabe o que procurava – e encontrou. Encontrou gostas de suor descendo – e isto valeu o meu dia, aqueles dias, o veraneio todo.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Na Parada do Ônibus

Todos os dias quando chego ao ponto de ônibus vejo aquela mulher. Usa saia de senhora, tem os cabelos lisos e religiosamente amarrados, óculos profundos, muito próximos de espinhas bem feitas, o rosto quieto de menina simples, ela traz preso debaixo do braço um livro. Segura como alguém que se esconde do mundo. Cada dia vejo que ela traz consigo um exemplar diferente; não consigo entender o porquê daquilo. Fico tentando em perguntar o que lê. Até que outro dia tentei aproximar-me dela para perguntar, mas o ônibus chegou antes, ela deu dois passos ligeiros e embarcou; apanhei minha condução logo em seguida.
No dia seguinte, nova tentativa. Dessa vez adiantei-me ao horário do ônibus dela, esperei. Quando ela apareceu e acomodou-se na parada, criei coragem e fui em sua direção. Quando percebeu minha chegada, abriu o livro, folheou algumas páginas. Recuei, não tive coragem de interromper sua leitura tão concentrada. Anotei mentalmente a cor da capa, os modos de menina, e comecei a contar as horas até o encontro da manhã seguinte.
Nesse mesmo dia, pensando nas linhas da timidez formadas pelo desenho do seu rosto, quase não dormi. À noite todo pensei nas mulheres tímidas que já conhecera na vida, o desafio em cada uma, como arrancar a preciosa palavra que estabelecesse um diálogo e me retirasse do mundo de livro em que vivo. Na manhã seguinte, devido à noite mal dormida, eu tinha muito sono e pouca paciência, de modo que não conseguir iniciar o primeiro contato. De mais a mais, a chuva estava forte, as pessoas amontoadas no cubículo, não havia como chegar. Tudo isso nos deixou bastante longe, cada um num extrema do ponto de ônibus. Ela amassava com impaciência o exemplar de um livro que eu desconhecia mas que gostaria de saber qual era. De fato, poderia tanto ser a Bíblia como um documento importante, uma entrega esperada por alguém, a revisão de um trabalho angustiante, ou simplesmente mais um livro de encadernação dura e bastante amarelado como tantos outros. Nada havia de especial além da sua timidez.
Foi somente no terceiro dia que pude me aproximar de uma vez por todas; fiquei bem perto dela, e foi aí que vi o título do livro em suas mãos. Era literatura de boa qualidade, leitura de respeito que demandava outras leituras e mais outras tantas discussões. Desse dia em diante, passei a respeitá-la, apostei severamente no potencial da leitora assídua, e na primeira oportunidade respirei fundo, olhei para ambos os lados (não havia ninguém) mas travei no momento em que ouvi uma freada: era a condução dela chegando. Estranhei o fato de ela não subir, ficou esperando o próximo ônibus (era o meu), como se esperasse por mim. Quando a condução parou à nossa frente, imobilizado e num princípio de pânico, apenas acompanhei com o canto dos olhos ela subir os poucos lances as escadas de nossa separação. Ela não olhou para trás nenhuma vez.
No dia seguinte apanhei em casa o mesmo livro que vi em suas mãos e trouxe comigo. Era um pretexto para conversar com ela. Quando apontou na calçada, postei-me de maneira a ficar ao seu lado, bem próximo, sem dizer palavra, mas o suficiente para que quando se virasse, ela pudesse ver o que eu lia. Nada. Nenhum músculo em seu rosto mexeu-se; como estava ficou: uma folha branca no rosto. Simulei uma leitura intensa, o interesse profundo do leitor caturra, e um tempo permaneci nessa tarefa. Cheguei a ficar com os olhos vermelhos, tonto em meio a tanta letra (eu não estava mais acostumado a leituras e os meus olhos eram velhos demais para o improviso da hora). Tudo foi em vão. Nem vi quando ela embarcou no ônibus, tal a sua decisão repentina de partir.
Hoje estou aqui disposto a conversar de uma vez por todas com ela. Perguntar, afinal, por que motivo todo dia ela carrega um livro diferente. Depois o seu telefone....
Mas hoje ela não veio.