domingo, 16 de março de 2008

Tanque Vazio

No primeiro dia de seu retorno à cidade das soluções impossíveis e dos corações partidos, ele acordou aí pelas três da tarde, olhou a esposa na cama tal como se olha um vegetal colhido, sentiu uma espécie de suor acumulado percorrendo o seu corpo, pensou em algum tipo de engrenagem desregulada, lembrou do carro e levantou. Por causa da longa viagem de retorno de férias, ele estava imundo – e sem gasolina. Caminhou pela casa, tomou um copo de leite esquecido na geladeira, a noite de ontem, pesada, um fogo a queimar o esôfago, sua resolução: apanhou as chaves, ligou o carro e saiu.
Na rua, deteve-se um momento. Reparou nas cenas cotidianas do bairro: mais uma construção sendo erguida do outro lado da rua, pessoas caminhando suas conversas e futilidades e, três casas adiante, o trabalho acrobático de jardinagem de sua vizinha. Engatou marcha, arrancou.
Seguiu, cruzou lentamente, ela não percebeu o carro se aproximar. A posição requeria tal perícia, e ele foi bastante perito a ponto de não ser visto. Buzinar não buzinou. Certos trabalhos estéticos da natureza exigem concentração e não devem ser interrompidos. Assim pensou, no compasso de uma marcha lenta, velocidade baixa, colado no silêncio do carro, das horas, o som inaudível da terra sendo mexida e remexida, a ginástica do movimento sincronizado da vizinha, a luz implacável do meio da tarde; enquanto no carro, apenas o barulho do tanque de combustível a chacoalhar como um aviso, um copo vazio, o uísque da noite passada, a garrafa caída, os olhos no fundo, gritaria, discussão, o sono profundo; o medo quando acordou e olhou-se no espelho, a sede acumulada, a fome, o líquido solto, revolto, o vazio. Era preciso chegar logo a um posto de gasolina.
Escolheu a rua mais calma, parou o carro embaixo do sol – já não importava o calor – ali dentro tudo se resolveria. Deixou – este era o costume – todos os espelhos em alerta, na posição de defesa. Olhou em todas as direções, ao redor do carro, silêncio; não havia viva alma na rua àquela hora. Fechou os olhos. Tudo como numa fotografia, fragmento de memória, imagem rápida a que teve acesso, dez minutos atrás. No interior do veículo, o calor caminhava pelo seu corpo, subia e apertava a garganta, enquanto lá fora o mormaço abraçava a lataria. A batida seca dos últimos litros de gasolina nas paredes do tanque marcou o ritmo, seguiu o balanço, a força impulsiva dos recursos minerais, a memória recente dos serviços prestados num jardim qualquer, imagem distante apenas algumas quadras e restrições. Qualquer planta precisa de água. Estranho pensar em jardinagem numa hora dessas.
Quando tudo voltou à calmaria das horas, do dia, de um dia quente e qualquer no meio do verão interrompido (o retorno antes do previsto, a esposa lhe perguntando por quê), quando todos estão fora da cidade e as ruas ficam só para ele, por um breve momento o sorriso voltou ao seu rosto. Depois sumiu.
Foi quando respirou fundo, esfregou as palmas da mão, como se estivesse num dia frio e lembrasse de um compromisso. Então assoprou a secura da boca, lubrificou os lábios umas tantas vezes, em seguida girou a chave e partiu. Quando o carro se pôs em movimento, lembrou de olhar mais uma vez o marcador de combustível e pensou nas coincidências da vida. Enfim, o tanque estava vazio, e era preciso fazer alguma coisa pelo carro, pela casa, pela vida, dar boa tarde às coisas perdidas aqui embaixo.