sexta-feira, 13 de junho de 2008

A sete graus

Um homem caminha na beira da praia e carrega um termômetro dentro do bolso. É um volume incômodo, mas ele preciso disso. Faz frio nessa praia deserta, e esse homem tem um trabalho a fazer. Enquanto caminha ele mede os passos, sente a temperatura (está quase no ponto) e olha o horizonte. A praia está deserta, nenhuma viva alma. Como imaginou, antes de estacionar o carro, duas horas de viagem, e agora a praia é sua. O deslocamento até aqui foi silencioso, não há movimento, ninguém para testemunhar o seu ritual de comunhão com o inverno. Tudo ao seu modo, ninguém para dividir a imensidão da areia úmida e cinzenta. Ele caminha e pensa em como pode ser frio o inverno, o seu inverno. Gosta muito dessa época do ano porque tem verdadeira paixão por medir temperaturas baixas, avaliar o corpo reagindo ao frio, o estado das coisas. No inverno nada o incomoda ou perturba, a praia é sua, o mar está limpo; nada daquela tonelada de dejetos que os banhistas deixam todo verão. Largam seu lixo e vão embora. Nenhuma mancha de sujeira, nódoa ou calor; nada de contato humano, aglomerações, gritaria ou qualquer outra espécie de desconforto. O inverno é muito mais higiênico, tranqüilo, não há nada que possa atrapalhar o seu trabalho. Lembra então o que veio fazer, coloca a mão no bolso em busca do instrumento, o volume é incômodo no outro bolso, e gelado. O termômetro marca oito graus.
Caminha pelas lembranças do último verão. Fez um serviço bastante limpo aquela vez. Pisa a areia que abrigou centenas de pessoas e olhares atentos. Poucos conhecem a importância do seu trabalho, as pessoas só sabem sujar o mundo com suas intimidades e crenças, a tal ponto que atrapalham muitos interesses. Olha o chão. Apesar dos meses que separam do verão, ainda há restos do estrago coletivo, a impressão de que as pessoas vêm para o litoral apenas para deixar o seu lixo, beber, pular, dançar, família, cachorro, televisão, velas para o santo, dívidas, dúvidas, temor e amargura. Depositam tudo e vão embora. A praia vira um lixo do dia para a noite nos três meses de calor do ano. É por isso que o seu trabalho é tão importante: alguém precisa limpar o mundo.
Encontra o lugar perfeito para terminar mais este trabalho. Distante, afastado, apenas a areia fina e as pequenas plantas que insistem em crescer no meio do nada. Apanha o termômetro uma última vez, abaixa-se, enterra-o chão, ele precisa medir a temperatura da areia. Afinal, daqui a pouco ele vai abrir o porta-mala do carro e tirar de lá aquele pacote de lixo humano, a escória que alguém pagou para ele depositar ali. Esse homem vai enterrar o seu lixo direitinho, como deveriam fazer os banhistas antes de voltarem para suas casas. Nada desse negócio de deixar o lixo a céu aberto.
Olha o termômetro. A temperatura da areia está ideal. O aparelho marca sete graus.