quarta-feira, 30 de julho de 2008

Hora de terminar

Comecei tarde, terminou nesse movimento louco de dedos e pincéis, a dança, a falta de inspiração que tenho à minha frente. Lembra um pouco a obra máxima jamais produzida, o grand finale, o delírio extremo, o prazer máximo, a glória, mas não é nada disso; é apenas uma hora da manhã e estou sozinho diante da tela vazia. A falta de inspiração. O suor a inundar o espaço em branco diante de mim. Nada a escrever, nada a pensar, apenas a o movimento retórico de uma idéia mal concebida, e a tela que insiste em se reproduzir. Em um instante, apago. Depois vem o azul, a luz balança, tudo escuro, estou no fundo da noite.

Com a luz, vai embora também o olhar nervoso dos meus desejos; desligo a última tomada, desligo-me a mim. Sou um relatório sem fim.

Vejo o resultado (escuro) e sei que hoje não há pintura, nem obra, nem arte pronta, crua, cozida ou acabada. Sou o vazio de uma sala escuro em que todos os meus desejos saíram pela única porta.

Foram sem mim.

As palavras neste exato momento me fugiram, ficou a noite e um breve ponto de luz que se apaga.

Sobrou o pincel e a superfície lisa, rebeldia a comandar a dança dos pêlos, o movimento retilíneo da limpeza fora de hora. A carência. São quase duas da manhã e me vejo diante do teclado que estou a limpar no escuro da falta de razão.

Comecei tarde, sem hora para terminar.

domingo, 20 de julho de 2008

A Esposa do Leitor

Estão sentados em um café. Chegaram cedo hoje, as horas se passaram, ele ficou na mesma posição, lendo, enquanto ela fazia o papel da dama de companhia. Este é o acordo entre os dois. Enquanto ele segue a trilha de suas leituras acadêmicas – os trabalhos importantes que tem para o dia –, ela busca a brisa leve da tarde, os cheiros ao seu redor e as boas intenções de um final de tarde que se aproxima. E promete. Hoje é o dia em que as alunas do Mestre Sisudo chegam, sentam e depois pedem orientação. O casal está em silêncio quando a primeira chega.
A rotina das quintas se completa quando elas chegam. Para o consagrado professor, esperar os alunos para uma conversa na mesa do café não é exatamente o mais correto do ponto de vista acadêmico. Mas essa foi a única forma de conciliar o trabalho nesse dia em que sai com a esposa. O resto da semana, entre livros, sério e compenetrado, ele quase não fala com ela.
A primeira aluna chega, dá um boa tarde rápido, e já sai falando sobre os progressos na pesquisa. Meia hora depois, ela abandona o professor e se entrega aos prazeres da vida: um capuccino, um pedaço de torta de chocolate e uma boa conversa. Nessa parte, é a esposa do professor quem rouba a cena, e ele se fecha nos livros. Ninguém entende o casamento do respeitado acadêmico com uma mulher tão simples. Mas ela cativa as alunas.
A esposa. O único acontecimento no pequeno mundo em que se transformou o seu casamento consiste em acompanhar o marido nas tardes de quinta. O dia em que ele concede orientação aos alunos e sai com ela. O Célebre não fala muito (há tempo eles não conversam como marido e mulher); mas também todos na universidade sabem que ele não é de muita conversa, e se fala um pouco mais às quintas é porque sabe que as migalhas de motivação que entrega aos alunos são como um bálsamo. Para sua mulher, um tédio. Ela entende o olhar cheio de súplicas das alunas; a cena lhe dá pena; o café une frustrações.
Hoje veio Rosaura. A conversa da esposa com a aluna é doce e nem de longe lembra a amargura analítica do marido; também são agradáveis os ventos que trazem o perfume delicado de Rosaura. A sensação de conforto e carinho invade a esposa do homem que lê, e ela vibra; por dentro ela vibra; a outra também. Ainda há pouco se exaltaram tanto que o velho professor ergueu os olhos por alguns instantes – rápido incômodo em sua leitura – o suficiente para se perguntar a razão da proximidade entre as duas – e esquecer isso logo em seguida. Afundado no rio de suas leituras, ele retoma a linha reta de sua ciência.
Ficaram as duas.
Ali estão. Três horas se passaram desde o fim da orientação, e o olho de uma dorme no leito fundo da outra; as duas, cada uma lendo em profundidade a alma da outra. O resultado jamais será científico.
Durante esse longo tempo, entre sorrisos fáceis, carícias ligeiras e olhares vivos, a esposa do professor imaginou que estava na hora de pedir o telefone da aluna. Quem sabe um pedaço de papel trocado por debaixo da mesa... Afinal, quem poderá ver senão elas?

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Sara na maternidade

Ela voltou
Com tudo, seca e infinita, ela voltou
Mesmo que o mundo tenha ido embora
Ali está ela, a olhar, a filha que deixou
Mesmo que por um momento todos tenham ido embora

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Kombinabo

CRÔNICAS PARA MEU FILHO

Entre as brincadeiras mais importantes para uma criança de sete anos está o jogo das combinações. Num simples passeio ao sol do meio dia, essas combinações podem ser muitas. A luz que tudo cobre nos revela cores e texturas que correm aos olhos. Um elemento aqui, os sons, os cheiros, a dança das pessoas, o movimento dos carros... O olhar de um menino que está descobrindo o mundo tem o ponto de fuga na inocência das pequenas coisas. Os detalhes. Brincávamos naquele dia de procurar coisas e atribuir cores a elas.

─ Fusca creme.
─ Muro árvore.
─ Posto gemada.

Até que surgiu à nossa frente aquela raridade sobre quatro rodas: uma camionete toda branca, modelo 74 ou arredores, inteira, brilhante. Meu filho gritou:

─ Kombi nabo.

Em seguida torceu o nariz, segurou um segundo o beiço que se formou no espelho interno do carro, balançou a cabeça e forte ele disse:

─ Nabo é ruim, pai. Foi mal.