quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Apaixonado pelo título

CRÔNICAS PARA MEU FILHO

Estamos na sala de nossa casa assistindo à entrevista que gravei com o escritor Assis Brasil. Na tela, o bate-papo gira em torno das escolhas feitas ao longo da elaboração do meu primeiro livro de contos, O Homem Perplexo. A certa altura da conversa falo sobre o dilema de todo escritor, que em certos momentos precisa cortar seus textos como quem corta a própria mão. Ao escrevermos, este é, sem dúvida, o trabalho mais difícil e cruel. Comento sobre os títulos. Muitas vezes eles também precisam ser curtos e diretos, econômicos e impressionantes, à maneira do próprio conto, narrativa de impacto por excelência. Nesse momento da entrevista, comento o caso de um dos títulos longos que eu tinha dado a um conto e que, cortado, ficou mais belo, exato e expressivo. Digo que gostei tanto do corte sugerido pelo revisor que me apaixonei pelo título. Meu filho pula do sofá, leva as mãos à cabeça e grita para a mãe dele:
─ Mamãe, o papai está apaixonado por um título. Ele não te namora mais.
Todos riem; em seguida, eu quieto, mastigo o pequeno teatro. Fico pensando nas palavras que havia lançado no ar, o duplo sentido do verbo, a metáfora do amor abandonado (os restos de textos que jamais publicaremos), o sentido deslocado da frase, o literalidade presente em minhas palavras, mas fico pensando demais. Quase deixo o momento escapar.
Até que enfim sossego, recolho meus delírios extremos e guardo-os em alguma caixa de recuerdos. Concluo, enfim, que o melhor é observar a beleza dos diálogos e espontaneidade do sorriso de uma criança de sete anos.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Mundo animal

O filho menor quebrava bicicletas a martelo para ganhar uma nova; nunca ganhou. O irmão mais velho gostava de fazer experiências com venenos e formigas; na fila de quimioterapia, ele lembra que queria ter sido cientista; não foi. O pai chegava bêbado chutando o primeiro cachorro que encontrasse pela frente; um dia o vizinho o chutou, bateu a cabeça, migrou do mundo animal para o vegetal.
A mãe passou a falar sozinha durante o jantar.
Hoje ela terá companhia; Bingo se cansou da rua, e já não há mais perigo de chutes ou envenenamentos.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O Primeiro Livro

Apareçam.

Andaime de mãos

Por algum tempo, Fanciele ficou arrumando as sacolas de cosméticos. Sua atenção, contudo, estava voltada para o homem que colocava azulejos. Alto e atlético, olhos verdes, o corpo uma estrutura bem montada, o rapaz alinhava a construção civil e sorria para o colega de andaime. Na primeira pausa, ele desceu e se aproximou dela. No catálogo, apontou:
– Vou encomendar este creme para as mãos.
Combinaram a entrega num bar próximo, três dias depois.
Daniel chegou acompanhado. Tinha um laço humano em sua mão. Leve toque de dedos ásperos. O riso pulando no coração.
Chegam e permanecem sentados, os três. Franciele é quem faz o primeiro movimento, abre a bolsa, entrega o produto. Ela espera o pagamento e não tem palavras. O pote deixado sobre a mesa, apenas seu olhar que observa o dinheiro deixado, tudo está certo, falta apenas o aperto de mão, mas seus dedos são como um corpo que despenca e cai em um vão. Ninguém naquele bar vê, o acidente não é tão grave assim. Sob a mesa de poucas palavras mãos de andaime entrelaçam uma história que não termina ali. São mãos que vibram porque a noite chega.
Franciele apanha o dinheiro e vai embora.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Teus reflexos diante do outro

A sensação de que ele sairá da grande sala, descerá um jogo de escada, e a qualquer momento a porta estará aberta, um clique no pescoço, um pulo no coração e depois o falso sorriso de quem não vai pedir - você de alguma forma sabe - ele ordenará.

Você pensa, durante longas duas horas depois da saída dele, você pensa; pensa mas não faz. A gente nunca faz nada, não faz nada e se esculhamba.
Então você diz sim, concorda, o seu pescoço subindo e descendo lembra um elevador, isso está acontecendo agora, sim, você concorda, mas já faz duas horas que ele saiu.

São os teus reflexos diante dos outros.