quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O conformista


De onde estava, pouco ele conseguia ver. Confusão de luzes e movimentos, e os cruzados guerreiros em busca da vitória. Sequências irreparáveis para perfeita comunhão com o gol – retidas na memória. Imagens épicas e passadas, de grandes partidas vividas, pretéritas, os amigos pelejando pelo flutuante placar, ele defendendo tudo e todas. Ele, o desajustado. Agora, enquanto ele estava sentado ali à beira do gramado, via-se como um inútil (peça fora da engrenagem) que nada podia fazer. A única coisa que o alucinava era o frio – cortante tropeço do atacante diante do gol – mas a noite fria estava a enrijecer não só a sua precária preparação como o seu entendimento. Longo tempo de espera, uma vida por uns minutos de futebol, duas horas para chegar até ali, dez minutos de futebol, mas não era só isso. Havia alguma coisa na linha do horizonte do gramado que o perturbava: a dança de braços e pernas, passadas voadoras, o descarrilo de alguns em linha reta, ébrios tropeços, cenas grotescas de uma partida de futebol de várzea, vista, assim, deste ponto de vista: no cru assento de uma arquibancada de beira de campo. Destino de quem não teve melhor sorte (e nem lugar) nessa noite em que os refletores estiveram longe de si; noite em que trocou a condição de titular por alguns minutos de parceria com os amigos. Sentado, imaginava-se em campo, ajudando a equipe; imaginava também as razões que o teriam levado à solidão das escarpas do gramado. Destino, desatino: observar o porvir de uma partida e dela não ter a menor consciência. Prevista interferência. Ruído, exclusão. Corrida em direção ao nada. Aceleração da paralisia. Ele, espectador de luxo que apenas acompanhava o desatino dos amigos em campo, era o signo do conformismo. Em meio a esse devaneio, chamaram-no para entrar em campo. O absurdo não tem hora certa.
A bola chutada. O chute perdido num toque de canela, na falta de classe, no desperdício da jogada morta. A desistência do atacante, crente, este, de que a conclusão errada faz virar o rosto do companheiro de equipe. Mas o goleiro, essa peça rara de engenharia, de movimentos mecânicos e escudos reflexivos, o eterno marido das traves e da instância desafiadora da tragédia, esse era o homem que podia viver a solidão da desgraça consumada; sim, ele, que instantes atrás aceitava a reserva técnica de seu futebol quaternário, quieto esperou o grande momento de demonstrar o seu talento para a tragédia. Ele só precisou de dois minutos para mostrar o que acontece durante o desterro da fria espera – os goleiros são muito suscetíveis às intempéries. Alguns são emotivos.
Na noite de ontem, este foi. Como um autômato, ele entrou em campo e não viu o chute pálido, o cruzamento cinza do atacante que ganhou a ponta da área e chutou. A bola passou ao lado, rente, morna. Constrangida, ela entrou.
"Melhor retornar", agora é ele pensando. "Esquecer." Imagina-se como se sentasse no cômodo fracasso dos seus 42 anos, animal quieto na estância recuperadora que, agora sabe, é o banco de reserva. Conformar-se com o destino, negar o desatino. Fugir da dor de quem persegue e nunca alcança. "Melhor fora do que no centro deste desmoronamento", sim. "Sim, o time parou", ele ainda pensou.
Ele, o conformista.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A garota do vigésimo quarto andar

Para K.

É a sétima vez que ela retorna do banheiro. Contei (acredite, contadores fazem isso o dia inteiro). Incrível, mas a garota da janela do vigésimo quarto andar do prédio ao lado já foi ao banheiro sete vezes nesta manhã que nos separa, de um lado sua mesa cheia de trabalho, do outro, minhas fantasias perdidas entre números. O chefe já me repreendeu e mais uma vez disse que não devo procurar diferenças no invisível, muito menos na vizinhança. Sinto que ele está de olho na mentira que é o meu trabalho, mas eu também sei que ele esconde não só diferenças, mas negócios escusos em telefonemas silenciosos dentro de salas fechadas. No outro prédio, ela, a única luz neste mar cinzento de arranha-céus, cobranças e fechamentos, hoje ela está diferente. Notei que, como em outros dias, toda vez que volta do banheiro, caminha esfregando o nariz. Daqui, de atrás da cerca de vidro que me protege, fiquei a imaginar em minha cabeça de agrimensor de números: gripes, resfriados mal curados, alergias perpétuas, carpetes infestados de ácaros, ar-condicionado entupidos, a pressão no trabalho, o medo de despedida ou algum namoro rompido (eu sou mesmo criativo com as probabilidades de tentativa e erro). Nada disso. A exatidão é outra: é dela. Enquanto isso, erro na soma de tudo, e os meus constantes erros são objetos do apressado do meu chefe que, sem explicação, para diante de minha mesa, criatura insistente, mãos na cintura, sempre falante, os movimentos rápidos e autoritários (ele está me solicitando o fechamento do relatório até o final do dia). Nem escuto, só concordo. Meu pescoço é um organismo a servido da Contabilidade e da concordância em gênero e número. Ele fica ali, estátua da impaciência, deselegante ao completo. Sim, por trás de seu terno vintage despojado vejo Karla (imagino que deva ser este o seu nome), mas o chato e inconveniente do meu chefe continua ali. Reparo que ele também leva a mão ao rosto e coça o nariz com frequência, e isso me lembra que talvez eu seja o único desprovido de vícios neste escritório. Do café ao donuts, passando pelas horas extras intermináveis, todos aqui têm uma queda pelo abismo. Os passageiros da escuridão. A minha perdição tem endereço: as janelas do 24º andar. O meu único interesse é olhar Karla. (Alívio: o gerente das contas prontas sai da sala.) Na janela defronte, ela se levanta de novo; sua necessidade é o meu delírio. Torço para que ela siga pelo melhor traçado, e volte com a alegria renovada de quem trabalha entediada o dia inteiro em uma sala do vigésimo quarto andar. Porque depois eu já sei: sai no início da noite, caminha até a estação, são nove paradas de metrô, algumas quadras a pé, ela sempre chega sozinha em casa.
Hoje não poderei segui-la. Por certo, o homem do terno chumbo não vai me liberar antes das nove.