quinta-feira, 28 de novembro de 2013

As cores do grão-de-bico


CRÔNICAS PARA MEU FILHO


Há uma luz. E ela está acima de nós. Na pia, este lugar onde agora, de pé, encontro-me ao lado de meu filho a fazer o prato mais colorido que conheço.
Grão-de-bico.
Outras cores preenchem esta cozinha. Vem das paredes, da confusa gaveta de utilidades, na travessa que servirá o alimento desta noite, os ingredientes, nossas roupas, braços, estampas, esta diferença na cor de nossos olhos, cabelos, no tom da nossa voz, a música que aqui chega, ao fundo, esta luz que entra fragmentada pela janela da cozinha, e são oito horas da noite e o nosso prato está quase pronto.
Foi um trabalho e nem tanto, a quatros mãos, a adicionarem em vasilha o pacote de grão-de-bico e a parafernália de temperos mais uma dúzia de ingredientes (vai tomate, vai atum, vai cenoura, vai cebola, vai pimentão, sal, azeite de oliva a gosto...).
Há um sorriso em nossos rostos.
Será que estamos aparentemente felizes?
Por que e como sabemos felizes?
Porque o prato levanta voo da pia, caminha pelo espaço imaginário de uma entrega, e guiado por nossas hábeis mãos ele chega à mesa da sala de jantar.


Há outra luz. E ela está acima de nós, nesta grande mesa em que nos aproximamos, talvez seja efeito do conjunto exagerado de lâmpadas, talvez venha dos céus, da rua, pois o vento lá fora traz tantas outras informações que eu me perderia se saísse agora, mas não, porque aqui dentro há outras motivações, a música caminha pelas paredes da casa, nos envolve mas não ensurdece, e ainda há a palavra a ser dita, a dizer, o convite, este feito no exato momento em que aterrizamos o prato na bancada da mesa e anunciarmos, para ela, o jantar de hoje.
Grão-de-bico.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Ecos caóticos

Nesta espécie de Manhttan maranhanse, caminho em meio à multidão de pessoas, e na ponta da rua, esquina, um grito.
Devaneios no meio da confusão.
Briga, empurrão, alguém salta em acrobático pulo e corre vestido em roupas brancas por entre estreitas ruas – a multidão persegue o agressor.
Inútil.
Chego-me perto do grandão que ficou derrubado no passeio, uma parte de gentes a olhar a figura caída, enquanto o restante da massa, aos berros, corre atrás do magricela fujão.
Abaixo-me.
Pergunto está tudo bem; responde me leve para casa.
São tantas quadras, ruas, Beco dos Barqueiros, enfim a travessa. De novo algo civilizado: a avenida.
Ele aponta o outro lado da rua.
Na porta, o Minarete: 120 quilos de massa muscular bem definida.
Acima, a placa:
Karatê, Murros e Feijão.
Chegamos. O monstro com corpo de capoeirista permanece rígido diante da porta, imóvel Saturno a censurar com sua aparente frieza aquele que acaba por receber aos braços. Eis entregue aqui o aleijado parcial da briga da Rua da Boa Ventura.
Pergunto está tudo bem; responde 'eixa cuido meu amor.
Os dois se abraçam, há carinho e perdão na cena, e mesmo embalando o meu já vou, meia-volta, ainda tenho tempo de ouvir o estalo do longo beijar.
Ecos caóticos.


A partir do curta metragem de Jairo Ferreira

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Imã

Animou minha manhã
Este imã
A quem chamo
Tuas palavras

Para D.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Instabilidade - II




Há uma abertura. Inicia em minha casa, atravessa pátios, sobe paredes, encontra luz.
Tem a forma de um chuveiro, tem vida.
Ela.

Há outra luz, esta artificial, e depois de abrir as portas geladas onde a guardo, encontro a forma cilíndrica no desprendimento das horas mortas, na ponta de solidão que envolve o meu quarto de escrever.
Sou um homem só.

[Para esquecer minhas limitações, esta noite serei, mais uma vez, este cilindro frio e entorpecente.]