sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A caderneta

 Nesta manhã em que visito os pequenos dramas do casal de vovozinhos a que chamo meus pais – e repiso toda a sorte de chantagem emocional e jogo de argumentos para não decidirmos, a três, qual afinal dos dois têm razão – esse incômodo desconforto dos pais confrontando o bem-querer ao filho que os escuta e não se faz entender – e eu nem sei se estava escutando direito quando pedi caneta e papel – e de uma gaveta a minha mãe retirou uma caderneta de onde caíram terços, contas e algum panfleto de santa católica, mensagem espírita ou São Jorge da Umbanda – porque a minha mãe, a sempre mais falante dos dois, carrega esse sincretismo religioso brasileiro de explicar tudo – e enquanto eles iniciavam mais algum embate intelectual sobre a forma correta de cortar a manteiga ou “a quantidade absurda de leite que o teu pai toma”, eu apanhava o pequeno caderno e iniciava uma pequena história do filho que chega à casa dos pais – e uma vez por semana ouve a cachoeira de lamúrias e me dói aqui, me dói acolá, os cachorros não-sei-o-que viraram a lata “que ele nunca recolhe no meio do pátio”, a tua tia, sabe, está muito doente, e aquela tua irmã sabe-o-que-ela-fez-agora?, eu ia construindo um minúsculo texto sobre a felicidade das quartas-feira, quando viajo vinte e oito quilômetros para continuar o filho deles.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Aquele casal

 Alimentando os meus ouvidos estavam, além da música clássica dos 1080 da Rádio da Universidade AM, os pequenos cuspes da surdina tosca de uma velha kombi parada ao meu lado na sinaleira (inconfundível som da minha infância). Aquilo me irritou profundamente porque eu não entendia o porquê de o motorista acelerar de forma tão intensa e insistente, a produzir níveis inacreditáveis de decibéis às 9 horas da manhã, ali, no centro horripilante desta falsa metrópole de planejamentos nada estratégicos e congestionamentos pouco analgésicos. A música, sufocada – e eu não pude deixar de perceber o quanto aquele barulho lá fora estava me desconcentrando, uma vez que os vidros eu deixo sempre abertos nesses dias de céu limpo e temperaturas amenas, propícios para extensos e despreocupados passeios de carro – e eu lembrando mais uma vez nos últimos trinta minutos que eu estava indo para o trabalho não para o campo... E enquanto no rádio tocava alguma sonata de Brahms para clarinete em dó maior, era a outra a dor a rasgar os meus ávidos ouvidos, e tudo isso só cessou quando eu me virei e descobri que não era apenas uma caminhonete utilitário, mas sim um desses motorhome utilizando em viagens e acampamentos. A minha surpresa, então, foi logo transferida dos ouvidos para os olhos, virando a seguir fascinação no momento em que reparei no rigor do traje de passeio do casal de idosos que dirigia aquele veículo adaptado. Este mesmo instante em que esqueci a música, o trânsito pesado à minha frente, o filme de terror que são essas calvários urbanos, sinaleiras, buracos, o idiota da frente, o idiota de trás outrossim (como gostam de outrossim os idiotas) e esquece até os meus compromissos entediantes de um dia no escritório da contabilidade do décimo nono andar e passei a percorrer o suposto trajeto das tantas viagens daquele casal.

sábado, 1 de novembro de 2014

Relato sobre S

Acordo. Há uma necessidade. Ela é antiga, não consigo esquecê-la.

(Ontem eu preparava o caminho para nosso encontro de hoje, organizando cheiros e perfumes e drinques e lençóis e toda sorte entrelaçamento)

E ela veio. Chegou, bateu à porta (mesmo tendo chave, ela sempre faz assim), e eu abri o meu coração, depois a porta, e era todo sorriso e contentamento, e ela foi tirando aquele sobretudo de gabardine fora de época, depois sentou com a solenidade do encanto. E sem meias ou inteiras palavras, nos olhamos, nos amamos e como sempre e como sempre e para sempre.


E então acordo, e isto é agora, instante em que acontece, e não é porque estou dormindo ou sonhando que possa parecer confuso, mas porque as palavras dela ainda estão ressonando à minha frente, quando disse, está tudo acabado entre nós.