sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Um Desconhecido

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

O jogo é ponto de vista. Veja-se do ponto de vista de onde se quiser ver, não importa, uma partida de futebol será sempre um evento de múltiplas leituras, um acontecimento de densidade dramática e paixões incontroladas, como no romance de Lúcio Cardoso. Um absurdo. Claro que não me refiro, em absoluto, à crônica esportiva tradicional diariamente posta à nossa mesa em notícias de jornais, pois esta vê no jogo uma mecânica de decorrências, resultados e explicações. Mais explicações do que qualquer outra coisa. Para mim, iniciado há pouco tempo na prata da crônica, arisco dizer que o jogo é, antes, impulso, vontade e coração. Uma batalha épica, tal como escreveu Nelson Rodrigues. E assim quero ver o jogo de ontem. Uma seqüência interminável de acontecimentos insólitos. O jogo, um desconhecido para mim.

Sim. Jogamos todas as quintas-feiras, reunidos em torno de um grupo cuja unidade futebolística é dada pelos estreitos laços de amizade, por uma porção de cerveja Serramalte após o jogo e por um nome: Coflob (fiquemos assim, sem o nome por extenso por enquanto). Ali, um jogo. Quero dizer, sim, que a percepção de tudo que acontece durante uma hora é de que aconteceu um jogo. Uns pensam que não, que apenas corremos de um lado para o outro tentando a integração mínima de uma seqüência de jogadas que garantisse um pouco de plasticidade e beleza ao espetáculo, etc. Para mim, contudo, o jogo é insólito. Penso que do ponto de vista privilegiado onde me encontro durante a partida – a visão privilegiada do goleiro – me irrompem certos acessos de insanidade em campo, plenamente justificáveis pelo desatino que é o futebol amador, a paixão incontrolada de que nos fala Lúcio Cardoso. Eis ali o futebol no amor, porque a bola nem sempre rola redonda, ela rola insana.

Ontem, porém, apesar da inércia operante do nosso ataque – a insistir que a rede a ser atingida é a de proteção e não a do gol – e sobremodo por causa da lastimável apresentação do goleiro Dêga, um desconhecido em campo na noite passada, apesar disso empatamos. Digo empate, mas quero mesmo dizer que a partida teve ares épicos de vitória conseguida nos minutos finais (a igualdade de forças). E esta é a maravilha do futebol amador. O nada de um empate conseguido a duras penas. Quase digo, pernas, mas ainda jogamos nas linhas da lealdade.... O problema é esse desconhecido – o goleiro – que a cada lance insólito olha para as luvas como a procurar a explicação. O absurdo.

Sim, porque a certa altura da partida, não bastasse o irritante descompasso inoperante do nosso ataque, formado pelos Indomáveis Indômitos, ainda tinha o nosso goleiro, o Senhor Incrível (digamos que o Sr. Incrível tentando colocar o cinto no início do filme), que entregou o jogo em dois lances bisonhos, para não dizer lastimável e um tanto agressivo aos olhos serenos do seleto, sóbrio e único espectador que a tudo testemunhou. Ali, solitário, foi ele quem melhor viu o desempenho daquele ente abstrato postado embaixo das traves, o nosso goleiro. Ele, sempre ele, o eterno culpado. Ontem, hoje e sempre.

Um desconhecido.



Porto Alegre, 1º de setembro de 2006.

1 ComentÁrios:

Anonymous Anônimo said...

Achei sensacional essa parte: "Penso que do ponto de vista privilegiado onde me encontro durante a partida – a visão privilegiada do goleiro – me irrompem certos acessos de insanidade em campo, plenamente justificáveis pelo desatino que é o futebol amador, a paixão incontrolada de que nos fala Lúcio Cardoso. Eis ali o futebol no amor, porque a bola nem sempre rola redonda, ela rola insana."
Muito legal mesmo! Abraços

segunda-feira, 04 setembro, 2006  

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