sexta-feira, 28 de julho de 2023

CORDILHEIRA

 

Adiante, outra descida, tenho a impressão de que é a última, olho a redor, mas quem me confirma isso é o carro, este alugado de quatro portas e baixo orçamento que retirei na locadora há novecentos quilômetros atrás, e que, no entanto, começa a falhar, sei, não era para ter ido tão longe, desrespeitei todos os limites – inclusive os contratuais –, e agora as montanhas surgem à minha frente, alterno o olhar entre os instrumentos incertos do carro e o perigoso marcador de gasolina a lembrar-me de histórias e de pessoas que ficaram perdidas no meio do nada, sem nenhum tostão no bolso ou conseguir falar nada da língua local, essas coisas que acontecem em filmes, ou são lidas em livros, mas a minha vida não se parece com nenhum romance – eu estava colocando minhas últimas economias naquela viagem –, onde mesmo?, me pergunto, enquanto as mãos continuavam agarradas no volante, a mente dispersa, resolvo abaixar-me para buscar o maço de cigarros no porta-luvas, e então sinto o solavanco, algo no piso da estrada se modifica, o terreno oscila, desequilíbrio latente e a direção balança, escapa de minhas mãos, o carro desce no acostamento, e enquanto toda esta desgraça é narrada em primeira pessoa, minha reação formal e imediata é brecar, momento em que a demora dos freios em responder surge diante de mim como natureza sólida, exata, peremptória, e o carro desliza, estaciona e, aos pouco, o motor morre, momento em que olho pelo quadrado do vidro dianteiro, lá adiante poeira cinza-azulada de tons terrais, tufo girando à minha frente, e quando tudo baixa, percebo com nitidez as linhas vazias desta estrada enfadonha à minha frente; ao lado, o desenho da cordilheira tomando visualmente tudo ao redor, mas segue até terminar adiante, onde, ao fundo, em cenário maciço com cara de poucos amigos encerra tudo, tanto tempo rodando e eu ainda não havia encontrado o fim daquela estrada – não havia encontrado nenhum fim, e foi só então que entendi o drama, o carro ficaria sem gasolina nos próximos quilômetros, pergunto, o que eu estava fazendo ali, naquele nada?, súbito resolvo espichar os olhos sobre o capô dianteiro, ele sempre esteve à minha frente, mesmo quando eu não esperava nada dele, e agora ele esconde um fogo morto, reparo que, alguns metros adiante, a poeira espalhou-se com o vento, e foi só então que pude ver a garota, desenho e desejo, liso contorno dourado em paisagem árida, e ela estava parada, é possível até que estivesse assustada com a manobra involuntária que fiz com o carro, imprudência, deduzi que ela vinha no sentido contrário, por pouco não a atropelei neste acostamento, retiro, descarte, expurgo, um pouco a minha vida, aquilo que eu carregava nas costas como fardo pesado, sim, a garota tinha as roupas sujas e seus cabelos claros estavam cobertos de poeira; ela mexia neles tentando remover a massa cinzenta, e mesmo daquela distância era possível para cada um de nós olhar na direção do outro, não tive pressa, esperei ela fazer o primeiro movimento conciliatório, pois sua forma de encarar era assustada e causou-me certo estranhamento de memórias, pois sem aparente explicação comecei a chorar, confesso que chorei, devo ter ficado um tempo nesse estado da alma, porque o meu rosto estava molhado, preenchido com linhas assimétricas, uma pasta úmida misturada à poeira que entrou irresoluta pela janela aberta do carro, foi neste instante que ela começou a movimentar-se, aproximou-se em passos lentos, abaixou a cabeça e posicionou o rosto na fresta da janela do passageiro, mostrando seus olhos e perguntando se estava tudo bem comigo, claro, numa língua rápida, mas eu ainda estava agarrado de maneira firme ao volante, tensão pura em meus punhos e mãos, de modo que fiquei sem dizer nada por um tempo, mentalmente a desenhar o seu rosto, incrível a semelhança dela com outras arquiteturas emocionais, em terras distantes, onde não havia mais montanhas nem sentimentos ao meu redor, muito menos bilhetes ou qualquer tipo de consideração familiar, protocolos, educação, enfim, eu estava muito longe de casa, era outro deserto, rabisco, tomo a iniciativa de reagir quando ela começa a mexer-se para ir embora, gritei, chamei-a de Paula, ela voltou ainda uma vez até a janela e me corrigiu dizendo que seu nome era Samantha, acentuando a primeira sílaba, Sá, para em seguida contar que estava deixando a casa dos pais e indo em direção à capital da província, daí sacudindo a cabeça porque, afinal, ela percebeu que eu não conseguiria sair daquela apatia empoeirada sem o seu consenso visual, razão pela qual resolveu falar novamente, perguntou se eu não poderia levá-la até aquela cidade, ato contínuo, concordei, mesmo sabendo que teria que retornar na direção contrária ao meu destino, qual mesmo?, e num jato, nem tão rápido como pode parecer, religuei o motor do automóvel, aquela cidade ficava longe, havia poucas localidades no caminho, e foi assim que abri a porta, ela entrou agarrada à mochila, trazendo junto um bocado de poeira e um tímido sorriso adolescente, dispersando minhas últimas dúvidas, manobrei rápido, dei a volta subindo novamente no áspero do asfalto, tudo muito lento, sim, o carro não tinha força motriz, eu ainda estava assustado com a máquina, constatação que não me impediu de olhar pelo retrovisor: a cordilheira ficaria para trás, respeitei seu tempo, procurei não fazer nenhuma pergunta imediata, viajamos em silêncio, teríamos ainda muito tempo pela frente, e eu teria uma filha por alguns quilômetros, até acabar a gasolina.



Julho de 2023

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O notório problema

 

Durante dias fiquei aguardando ela chegar. Primeiro, vieram os homens, as máquinas e equipamentos, a sequência de reformas. Duas semanas depois, tudo estava concluído. Nem o lixo se enxergava, socado como ficou dentro de grandes caçambas de resíduos. Aquela residência cheirava à nova, vista daqui. Notei, contudo, que havia movimento na casa no início da semana seguinte. Eram os jardineiros, sua equipe, e eles vieram em muitos e começaram com o barulho de cortadeiras, tesouras de longo alcance, sopradores, rastelo. O sossego sobreveio um dia antes do feriado prolongado de Carnaval. A paisagem mudara, a cidade ficara vazia, eu já não tinha para quem olhar pela janela. A monotonia foi cortada pela assunção iluminada da dona. Chegou em caminhonete alta, desceu, abriu portas e janelas enquanto desfazia malas e sacolas, mas foi com as mesmas malas e nenhuma sacola que, poucas horas depois, ela partiu. A tempestade sossegou dentro de mim. Um silêncio constrangedor tomou conta daquele trecho da rua, e assim continuou pelos três primeiros dias de folia. No quarto dia, a vassoura começou a desflorar o pátio carregado de folhas, e tudo isso – pasmem – às sete da manhã, e foi naquele momento que eu vi a moça pela primeira vez, ou a ilusão de ver uma moça, cabelos longos como imaginei, recato, precisão, passos de uma sambista contida, a ilusão carnavalesca de um folião recolhido em seu ambiente, ponto de vista restrito, quadrado fechado, sentado de vez nestas rodas, num ângulo feito de lentes, porque em verdade, percebi, ela estava apenas recolhendo o lixo, varrendo as folhas, esfregando os vidros, subindo e descendo as escadas externas da casa reformada. Marquei o dia: era terça-feira no Méier, fevereiro ou março. De uma das grandes gavetas de apoio, localizada aqui ao lado da janela onde me encontrava, comecei a retirar, um a um, os equipamentos. Começava ali o meu notório problema.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Embarcadeiro

 [08:08, 31/12/2022] Edgar Aristimunho: DIÁRIOS OCASIONAIS. Ontem à noite saímos de casa depois de tanto tempo. Fomos no Embarcadeiro, Cais Mauá, ali no Centro Histórico. Ideia de Elisa, esta saída. Sextou, né?, ela disse. Jantamos no restaurante Isoj, comida japonesa com peruana. São pratos que Mateus pode comer tranquilo. E ele adora. Na mesa, lembramos do tempo em que Mateus passou a adorar comida japonesa, aos 4 anos, em São Paulo, com os tios e a avó materna. Memórias boas. Rimos. Noite linda e agradável. Merecíamos.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

O pente

Sentei-me no parque hoje à tarde. Cansei de olhar aquelas árvores do alto de meu prédio, dois quarteirões adiante, e resolvi quebrar silêncio desse resto do dia. Desci, atravessei a grande avenida, cruzei um trecho de terra até encontrar um banco livre; depois sentei-me. Por um instante senti a harmonia dos passos daqueles que cruzavam pelas pequenas vias, caminhos, bosques.

O silêncio era o mesmo de outras esperas, quando ela chegava com seus longos cabelos esvoaçantes oxidados pelos raios gelados do começo da primavera fria de Montevidéu. Então ela abria a bolsa, retirava de dentro uma escova de cabelo e começava a erguer a lenta obra que seria o seu penteado. Nesse processo, ficávamos um longo tempo sem nos olharmos, como se tudo já tivesse sido combinado. Ali começava nosso encontro, sem palavra, apenas sinais, códigos, parábolas de braços entrelaçados, dali até a rua das obscuridades.

Fui acordado pelo indivíduo. Sem aparente razão, ele sentou-se ao meu lado, mesmo percebendo, naquele instante, que o parque começava a ficar deserto. Quanto tempo fiquei em lembranças de meu tempo com ela? Também sem nenhuma cerimônia ele retirou do bolso interno do casado um pequeno pente, de aparência escurecida, gasto pelo tempo. Seus cabelos eram secos, os movimentos ríspidos, lentos e ondulados, mas nem cuspindo ele conseguia avançar no trabalho. No primeiro gesto mais brusco, o pente rachou.

Pus a mão no bolso de minha calça de sarja e lhe alcancei o meu pente, lembro, presente de nosso primeiro encontro secreto. Apanhou o objeto, examinou-o por todos os ângulos, virando-se, inclusive, em direção aos últimos raios de sol, como se examinasse um tesouro (a cor dourada do objeto criava essa sensação). Bateu as duas mãos contra o objeto, assoprou-o como um Deus dos Ventos e o colocou no bolso interno de seu surrado paletó.

Pensei em contar-lhe sobre aquele presente… não tive tempo.

Levantou-se e foi embora. Como chegou, como saiu.

Deixei-o seguir. Quando ele já ia longo, levantei-me e segui em frente, vencendo as alamedas e a felicidade dos que estavam no parque àquela hora. Olhei ainda uma vez em direção ao sol: ele caía atrás das últimas árvores. Esfriava. Instantes depois, retornei ao apartamento gelado em minhas recordações, venci o longo corredor de parquet, abri a porta do banheiro e aproximei-me do espelho. Meus cabelos estavam em desordem. Lamentei ter deixado com o desconhecido o presente que ela me dera.

Eu estava sem nenhum pente.


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Harmonia

 

No meio da tarde, levantei-me, desci as escadas e fui em direção ao parque defronte ao escritório. Ao entrar no perímetro do descampado, deparei-me com um cão de grande porte. Ele interrompeu a sua corrida, parou diante de mim, olhar maciço. Senti sua respiração na ponta do meu terno. Em seguida me cheirou. A fragrância dos perfumes da gaveta da minha mesa; a falta de banho; o café recém-torrado na cozinha do décimo segundo andar, algo nele rodeava dentro de mim.

Larguei a faca.

O cão lambeu as últimas linhas vermelhas daquela lâmina.

Virei-me. Olhei ainda uma vez, imaginando em que parede ficar o almoxarifado, suas caixas, o volume caído no lado direito da sala. Eu já não tinha motivos para retornar àquele prédio. Senti a harmonia dos passos quando segui em frente, vencendo alamedas daquele parque.

Agosto de 2022.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Gomes

 

Dá trabalho ter mais de uma mulher – os mil e seiscentos reais de salário e a jornada de onze horas de trabalho lhe diziam; percorrer uma casa a cada noite, também. Sopas em dias frios, comida nova (mais raro) ou requentada (mais frequente), jantares na esquina, sanduíches rápidos no Tonho’s Bar, e toda sorte de improviso faziam de seu estômago o mais judiado de toda construção civil de São Paulo. Magro, consumido pelos dias e noites, sua energia era pouca, e nas poucas horas livres, as solicitações dos colegas eram muitas (negava todas). Por tudo isso ele vivia a sorte e o lastro dos relâmpagos que antecedem a tempestade dos grandes amores: quatro amantes pareciam muito, era o que ele pensava quando se deparou com a quinta no mercadinho da esquina. “Lucinda e os lençóis”, foi logo maquinando. Como conseguiria administrar tantas visitas? E como se despedir delas sem que vizinhos o vissem? Eram perguntas que ele fazia para si. Seus colegas de obra desconfiavam daquele homem que não contava vantagem nenhuma. Sozinho no empreendimento, martelando paredes o dia inteiro e bastante esquivo às perguntas, era ainda mais econômico nas respostas. Independente dos comentários e das perguntas, todas as noites ele se dirigia a um código de endereçamento postal diferente. Era visto em casas de cores incomuns, localizadas em ruas ermas e distantes, longe dos olhos alheiros e de sua casa, sim, todo mundo tem uma casa. Nessas andanças, estava sempre rodeando pelo perigo dos latidos dos cães. Sua rotina era o troca-troca entre jantares e lençóis. No dia seguinte, silêncio.


Lucinda, a quinta amante, sempre acreditou ser a primeira (e única), até o dia em que descobriu que não era a única (nem a primeira). Descobriu e tomou a decisão. Mas não contou para ninguém (nem podia), afinal, ela não conhecia as outras. Esperou a terça-feira, o seu dia.

No outro dia – e no restante daquela e da outra semana – as residências da vizinhança amanheceram cultivadas em seus jardins com pedaços dele. Foi a insistência dos cães – esses farejadores da miséria humana – que denunciou o silêncio de tal barbárie. A polícia foi chamada.


Nenhum calmante foi encontrado nas gavetas ou nos armários da casa de Lucinda, mas quem cruzasse por ela na rua – e os vizinhos não tiveram notícias suas por longos dias – certamente diria “ali vai uma mulher feliz”. Também em outro lugar, e pelo restante daqueles dias, foram ouvidos tímidos comentários dos colegas do pedreiro sumido, a se perguntarem, afinal, que raio de tanta sorte Deus destina a um homem só?


Agora eram cinco, por etapas, os pedaços encontrados deste homem.

Gomes.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Montevidéu

[23:40, 28/02/2022] Edgar Aristimunho: DIÁRIOS OCASIONAIS. Lendo “A uruguaia”, do escritor argentino Pedro Mairal. O personagem é um escritor argentino quarentão meio em crise, que se apaixona por uma garota uruguaia. O ritmo de sua vida balança entre o trágico e o cômico -- e então ele decide viajar atrás dela na capital do Uruguay. Creio não haver redenção para ele ao final. A boa literatura argentina que o diga -- eis a escrita de Mairal. Faltam-me vinte páginas para concluir a leitura do livro. À tarde, troquei as páginas finais e optei sentar-me em frente dela para passar creme hidratante nos pés de minha amada. Tal como Lucas Pereyra, o protagonista do grotesco, escolhi o lugar impróprio e a hora errada. No meio da tarde e na área aberta da casa de meus pais -- e isto em dia de visita. Enquanto conversávamos, eu viajava naqueles pés, nas colinas da área central e pelas alamedas da memória: minha Montevidéu era cheia de curvas e lembranças amorosas. Lá vivemos a viagem de um grande amor no início do namoro. Fico imaginando o que o meu pai, Senhor José Edgar, deveria estar pensando naquela hora, ele, um homem que viveu a vida dura das estradas e teve poucos aconchegos longe de casa. A cena bem serviria para o enredo de um curta-metragem sobre a vida e a passagem do tempo, mesmo que seja sob o olhar metálico de um pai desconfiado. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Maurílio

 

Quarenta minutos de caminhada e o amor escolher de acabar daquela maneira, no meio da Avenida Presidente Franklin Roosevelt, Quarto Distrito, Capital, nem há nada de tão especial ou romântico neste nome, um presidente, já sei, mas sou uma universitária, quer dizer uma recém-formada que veio até este lugar em busca de um emprego, e quero pensar que não há nada de extraordinário em descobrir que Maurílio não daria, nunca deveria ter confiado nele, o primo deslumbrado, e, no entanto, foi preciso caminhar bons quarteirões para descobrir um pateta ao meu lado, começou quando o convidei, hoje cedo, para me acompanhar naquela seleção de emprego, o cara tinha chegado do interior dia atrás e estava hospedado lá em casa, e foi aquilo, as conversas para atualizar sobre o pessoal “lá de fora”, galinhada no sábado, domingo Fantástico, me disse que ficou meio assustado aqui na capital, outro dia bateu à porta do meu quarto para confessar que ficou encantado com o Bairro Santa Maria Goretti, diga, quem é que fica encantado com o Santa Maria Goretti?, Deus!, e daqui a pouco descubro que Maurílio ficou dando voltas por aí e fez amigos nos lugares errados, a turma barra do IAPI, os caras pra lá de mal-encarados, então convidei meu parente de Bom Princípio para ver se ele me ajudava, eu precisava trabalhara, fazer algo longe de casa, no início, era algo mais para sair um pouco da barra da saia da minha mãe, então aproveitei ontem à noite, coloquei uma camisola e bati no quarto de Maurílio, disse-lhe que eu precisava arranjar um emprego, casamento, casa, dinheiro para o aluguel, claro, um pouco mais de liberdade (nem sei se ele sabe o que é isso), contei-lhe como era difícil para uma mulher conseguir um emprego de contabilidade em Porto Alegre nestes tempos, os homens tomavam conta de tudo, Maurílio se resumiu a perguntar por que escolhi contabilidade, então lhe expliquei como foi que tinha feito cinco anos atrás, um domingo abri o jornal, procurei bem no caderno dos classificados, quando comecei a contar ele me interrompeu “quem é que procura um curso, uma faculdade apenas pelo número de anúncios nos classificados do jornal?”, expliquei que minha mãe não havia gostado nenhum um pouco do meu pragmatismo germânico, isso de dizer que é filho de pai da colônia, mas minha mãe é brasileira, ela queria outra coisa para mim, enfermagem, sei lá, na época segurei as páginas do classificado na mão, mostrei a ela e respondi “que se tem emprego eu consigo”, e eu estava prestes a conseguir a vaga, estava decidida, eu pedi para Maurílio me acompanhar, era longe, noutro bairro, já tínhamos saído de casa fazia quarenta minutos, agora já estávamos perto, a duas quadras do escritório, Maurílio veio comigo, aquele molenga poderia servia de apoio, sabe-se lá quem eu vou encontrar naquele escritório de contadores, o casarão estava lá do outro lado da rua, a placa anunciava o nome da firma, apontei a ele o local, e quando fui agarrar o braço de Maurílio para atravessarmos a rua, notei que ele ficou preso na calçada, virou-se, desprendeu-se de mim e já caminhava no sentido contrário, passou a falar, mudou a voz, ficou elétrico, infantil, meio eufórico demais para oito da manhã, e depois me disse “espera aí um pouquinho”, eu já sabia, o sol batia naquela lataria dourada e sua reação foi imediata, ele não conhecia muito bem a cidade grande, carros, ônibus, linhas exclusivas, prédios, sinaleiras, e agora aquele Ford Galaxie novinho, brilhando estacionado na altura do número dois mil e quarenta e dois da avenida do presidente americano, eu olhei na direção do escritório, dava para ver o tamanho da fila de candidatos, Maurílio ficou rodeando aquele exemplar poderoso, veículo amigo da indústria do petróleo, o Presidente Geisel tinha falado da Crise de 1974, e eu só sei agora que era esse o nome do carro porque ele gritou o nome do carro, depois: “na minha cidade não tem isso. Um Galaxie!”, e foi aí que eu percebi o quanto ele era um deslumbrado, um inútil deslumbrado, e descobri que ele não me ajudaria, nem para namorado servia, porque pensei isso algum dia, eu só queria chegar naquele emprego com meu namorado, alguém que se parecesse minimamente com um namorado, eu já tinha imaginado que encontraria uma quantidade absurda de homens na seleção, a fila não mentia, as aulas na Faculdade de Contabilidade não deixaram dúvidas, a formatura, eu sozinha no meio dos homens, este universo dos contadores não é para mulheres, meu pai sempre avisou, mas o meu pai nunca chegou a ver sua única filha formar-se na Universidade Federal, morreu dois dias antes, e agora o meu instinto está me dizendo que eu não deveria atravessar esta avenida, não sozinha, nunca sozinha, mesmo assim o fiz, e agora na fila todos me olham, e acabou de sair lá de dentro do prédio um homem de terno e gravata, olhou-me um longo tempo, o tempo de quem devora, olhei para o chão, depois para o outro lado da rua, cadê o Maurílio?, se ao menos ele estivesse aqui ao meu lado, não, ele ainda está alisando o Galaxie, às oito da manhã, gritando "olha, o motor ainda está quente", e eu ainda estou aqui.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Faces desbotadas

 Chegamos à meia-noite, o show estava a toda, acontecia há quase uma hora. Eu pulava de alegria. Finalmente Meu ego dissolvido na matéria em movimento. Quem disse que o show estava a duzentos por hora foi o cara ao lado. Olhou para meu primo. Gamou. Depois do nada me distribuiu um senhor chute na canela e largou esta: “Não enche, almofadinha”. De trás levei um cuspe na orelha. Grudou nos cabelos. Culpa do Otavinho. Quem é que se chama Otavinho e vem assistir um show do Fausto Fawcett? No meio da fumaça – caos. Música alta. Todos com caras de robôs efêmeros. Tinham avisado para que eu não sair de Realengo, não àquela hora. Ali não era o meu lugar. Zona Sul. Levei outro chute, e este veio quente como um direto de esquerda. Lá quatro caras pulando, agarrados, fumacê, nem olharam para mim. Depois levantaram o dedo médio para o sujeito à frente e depois derrubaram o magrão a pontapés. Um veio e socou a mão no meu traseiro. Otavinho nem aí – um Hamlet contemporâneo, estudante de arquitetura na Federal do Brasil. Me chamava de ninfeta narcótica. O sujeito nasceu em Vassoura, imagina, agora dando as cartas, há poucos anos ele nem conhecia o Rio de Janeiro e os Drops de Istambul. Ficou instalado lá em casa. Como? Aquele atraso na fala. Ele fica perplexo: realidade diluída numa tela de televisão. Eufórico, ao meu lado, ele pulava tanto que se desgarrou. Apanhei o braço, gritei: “Vão embora, Otávio”. Um empurrão. Daí me virei: atrás começaram a se beijar, começaram a se agarrar. A galera ficou excitada com a música alta. Do nada, levei uma bofetada, Desequilibrei, abracei-me no cara da frente. Aí jovem de Copacabana. Só faltou perguntar o que eu sentia, e o que eu sentia era a cabeça girar, então sou Otavinho, o meu primo é o motivo do meu ser ou não ser. Como cheguei aqui? Girei os braços, um girassol sem rumo, e não há ninguém ao meu lado. Vazio, porrada e intensa consciência da minha solidão. O primo sou eu, sim, confirmo que não há ninguém ao meu lado. Alguém grita que tenho as faces desbotadas de Cristiane F. Tudo gira, get out, no palco Fausto Fawcett grita alô polícia!, alguém vem pela diagonal quase me derruba, alô polícia!, eu imaginando que talvez os ventos uivantes sopram todos os amantes na noite de Copacabana, levo outro tapa, tento me endireitar, o passo é torto, o cabelo desarruma, a bolsa some da minha mão, tento fugir mas o homem ao meu lado é forte “o que você está fazendo, menina? Agarra forte meu braço, calma, não vai demorar”, Meu nome é Kátia Flávia, o sujeito ri, e ele é realmente grande, ou eu estou diminuindo, então tudo gira mais rápido, estou no asfalto, dou a última olhada ao redor, são muitos e eles têm muita vontade nos olhos, voam nas pessoas, grudam nas pessoas, a Lua lá em cima gira, o brutamonte está me arrastando para o beco, fizemos amor entre estrelas vigiadas, meu rosto espremido no chão e pergunto: onde as faces desbotadas de Cristina F.? Ao fundo turco camelô grita, turco camelô berra.


Agosto de 2021.


quarta-feira, 26 de maio de 2021

Coluna Cult # 500 - O Projeto

 

[19:26, 26/05/2021] Edgar Aristimunho: DIÁRIO DO CONFINAMENTO  | ANO II – DIA # 433. Este foi um dia especial para mim – está sendo. Dia de comemoração. Chego à elaboração da Coluna Cult # 500, texto culturais publicados para o público da intranet nacional de meu trabalho. Escrevi hoje sobre o livro “Crônica da casa assassinada”, obra de 1959 do mineiro Lúcio Cardoso. A última coluna desse ciclo que começou timidamente em meados de 2006 e permanece vivo até hoje, tinha que ser de uma obra linda e grandiosa. Este é o segundo projeto literário mais longevo que mantenho, perdendo apenas para os “Cadernos de Pensamento – Diários”, iniciado em 1987, e seguido do blog “O íncubo” (https://oincubo.blogspot.com), que mantenho ativo desde setembro de 2007. No meio do caminho, vieram os livros, em especial “O homem perplexo”, além de cinco publicações em parcerias literárias. Nesse trajeto, foram paridos aqueles que seriam os meus leitores, e é evidente que não posso deixar de registrar a camaradagem dos amigos, eternos apoiadores. Entre eles, os colegas e amigos da Assessoria de Comunicação da 4ª Região do MPF, onde desenvolvemos, juntos, o projeto da Cult. Nada seria possível sem o carinho de Sandra, o pragmatismo de Jéfferson e o incentivo de Guilherme. Grande beijo a eles. Quanto à escolha do livro de Lúcio Cardoso, imaginei que a entrega da resenha de uma obra tão colossal revelasse, ao fim, o essencial que perseguiu este projeto: a complexidade da sondagem do ser humano naquele registro literário preciso de um autor que entendeu a literatura como sofrimento e intensidade, e a vida como passageira da agonia.

terça-feira, 13 de abril de 2021

DIÁRIO DO CONFINAMENTO - ANO II - DIA # 390

 

[18:42, 13/04/2021] Edgar Aristimunho: DIÁRIO DO CONFINAMENTO – ANO II – DIA # 390. Estive no lavabo quatro vezes hoje. De resto, fui feliz em cama, mesa e banho. Nem poderia ser diferente. Na primeira, a motivação era ventilar a casa, porque sabemos que sempre há alguma janela ou portinhola a ser aberta em algum lugar – e você realmente pode não saber onde estão todos os lugares da casa – a menos que esteja preso por conta de uma pandemia. A segunda vez que estive no lavabo, as horas iam longe, avançadas (a fome também), e é provável que alguém tenha me chamado para almoçar e eu precisasse lavar as mãos, passar álcool, depois creme, depois sabão (nem sei mais a ordem). Quer dizer, creme hidratante (adoro esta palavra: “hidratante”) eu só passo depois do almoço, principalmente se eu tiver de enfrentar o time da poderosa louça a lavar. Falando em almoço, registro aqui que, de fato, corri até o lavabo logo depois do almoço. Era a terceira vez, mas não foi para o que vocês estão pensado aí; juro que nessa visita eu só fui até o recinto para conferir se tudo estava em ordem por ali; e também para desfazer minha desconfiança de que talvez tivesse derrubado alguns dos itens dispostos milimetricamente em alinhamento espartano na bancada superior da pia. De fato, constatei que o tubo de creme estava emborcado, como um corpo cansado e caído para o lado, situação até certo ponto constrangedora para um creme de mãos de luxo; por sorte, não deixei a torneira aberta em nenhuma das idas ao lavabo. Deixar a água pingando significa a perda de muitos pontos nesta casa, onde quer (e por quem quer) que se contem esses pontos. O motivo da minha presença no lavabo pela quarta vez foi a lembrança de ter visto um mosquito. Depois de alguns minutos lutando contra aquele inseto tenaz e odioso, consegui exterminá-lo. Como escreveu Enrique Vila-Matas na abertura de um de seus livros, “De resto, sou feliz. Hoje mais do que nunca”.

VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e Companhia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

300 Mil Mortes

         Há parques cujo gramado está seco, na cidade de Almas.

Avenidas vazias.

Silêncio fora de hora e são derradeiros dias, para muitos, os que morrem e os poucos familiares que ficam.

Há andarilhos desconhecidos, aqui e ali, mas estes insistem em caminhar com suas caras carrancudas, desprovidos de máscara, graça ou qualquer equipamento.

Deixam espirros pelo traçado das ruas da cidade – e os corpos enterrados muito longe.

Medo de contaminação.

Não há sorrisos nos rostos – restaram esses cafonas.

Que, disseram-me, não possuem nenhum compromisso com a razão.

De longe venho, estranha missão.

Chego tarde ao endereço, e mesmo assim permaneço um tempo sentado sem sair de dentro do carro.

Nunca gostei do que fizeram com os habitantes desta cidade – Almas –, o tratamento precoce proposto pelos governantes e que levou ao extermínio da própria população.

Em Almas, estou disposto a encontrá-los. Um a um.

Dou uma última conferida: é mesmo este o endereço – o luxo e ostentação não mentem.

Abro o porta-malas do carro, e dali retiro a sacola. Ela está pesada; minha consciência, contudo, continua leve.

Trago a esperança.


Abril de 2021

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Resenha - Filme: De olhos abertos

O documentário é o gênero cinematográfico que mais permite a aproximação entre público e objeto fílmico. A premissa básica do documentário é esta: aproximar pessoas e realidades. Toda e qualquer outra forma de filmar será ficção. A realidade filmada é o centro de tudo num filme de tom documental, e por isso tais obras nos agregam conhecimento. Melhor: reconhecimento. Registrar histórias de vidas, trajetórias, períodos históricos, temas, situações, projetos, está no centro desse tipo de registro; depois, entender melhor essas realidades. O filme De olhos abertos, lançado em 2020 e dirigido por Charlotte Dafol, é a documentação visual do projeto “Boca de Rua”, em que pessoas em situação de rua produzem suas próprias notícias, imprimem em jornal e vendem nas ruas de Porto Alegre. Neste ano de 2020, o “Boca” completou 18 anos de existência. O documentário celebra isso.

No centro do documentário De olhos abertos estão alguns dos problemas sociais mais cruciais da sociedade brasileira: a falta de moradia, a ausência de apoio familiar, o abandono social pelas autoridades, as dificuldades de sobrevivência (até mesmo de alimentação), criminalidade nas ruas, drogadição, alcoolismo, além da violência policial, por vezes arbitrária e desproporcional. O grupo de moradores de rua que produz e vende o seu próprio jornal, o “Boca de Rua”, um projeto inédito por trazer o olhar da rua sobre a rua, está junto há 18 anos. Além de uma fonte de renda, o jornal é, para os seus redatores (os moradores de rua produzem as notícias), uma voz que pode ser ouvida, uma ferramenta de denúncia e de organização perante a a população e as autoridades da cidade onde vivem. O grupo cresceu, a sociedade mudou, mas as dificuldades continuam basicamente as mesmas. As lentes da diretora Charlotte Dafol são delicadas ao mostrar a dura realidade de quem não tem onde morar, ou enfrenta a rejeição da família, problemas com drogas, alcoolismo, sentindo, por vezes, a inadequação/rejeição nos abrigos da Prefeitura Municipal, sem falar na violência social quase diária. Nesse sentido, o documentário De olhos abertos capta com sensibilidade as estratégias de sobrevivência dos moradores de rua que precisam, diariamente, conseguir o que comer, achar onde dormir, cuidar de si e dos seus pertences e sobreviver à violência urbana. São preocupações cotidianas que somente eles mesmos podem nos contar – e é o que o documentário faz. A diretora dá voz tanto para os idealizadores do projeto como para as pessoas em situação de rua.

No documentário, a coordenadora do “Boca de Rua”, Rosina Duarte, conta como o projeto criado pela ONG Alice – Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação foi decisivo para o nascimento do jornal. Conta-nos também sobre as reuniões, os debates, os conflitos dentro do grupo e, por fim, sobre as belas matérias produzidas. Impossível seu relato não falar das perdas, tratando-se de populações em risco. O enfoque, contudo, é no trabalho coletivo, na produção das notícias, na escolha dos temas a serem abordados, em decisões importantes como as regras de convivência do grupo, a divisão de trabalho, as estratégias de venda na rua e, até mesmo, as capas, muitas das quais registram os principais problemas enfrentados pelas populações de ruas. Alguns moradores de ruas que foram ou são figuras importantes da história do jornal aparecem no documentário, como “Bocão” e “Beiço”, entre outros. As histórias mais comoventes também aparecem, mas o documentário tem o tom exato. Ele escuta essas pessoas. Como no filme de Charlotte Dafol, o melhor aqui é ter próximo de nós a opinião dos próprios moradores de rua sobre o filme: “A gente não costuma se ver na tela. A maioria de nós nem tem televisão! Mas foi uma experiência muito boa. Gostamos do resultado final e da participação de cada um. Falamos o que tinha que ser falado, contamos a realidade da rua, ninguém mentiu. Alguns não foram entrevistados, porque não quiseram ou porque não dava para pegar tantos depoimentos. Mas todos apareceram em alguma cena, porque todos nós somos o Boca. E cada um tem seu jeito de trabalhar, de falar, de vender, de abordar as pessoas, na sinaleira ou na Cidade Baixa. Quem não queria muito ser filmado avisou e ficou mais de cantinho, só isso. Afinal, foi um baita trabalho, não só da Charlotte, mas de todos nós. Sentimos orgulho ao compartilhar essas histórias, sem vergonha de contar o que passamos. Muitos não sabem da dificuldade de comer ou dormir com sono tranquilo, para quem vive na rua, dia e noite. Ter que arrumar um papelão e uma aba para descansar, ter as suas coisas roubadas ou jogadas no lixo… o filme acompanha tudo isso. Mostra até a gente cozinhando à noite e acordando de madrugada. Porque nós não temos hora para dormir, mas temos sim para levantar, antes mesmo do amanhecer, às cinco horas da manhã.”

O registro documental feito pelo trabalho de direção é sensível. Nascida em Paris em 1987, enraizada no Brasil desde 2013, Charlotte Dafol é cineasta, fotógrafa, autora e musicista. É formada em História e trabalha em feiras ecológicas. Na França, dirigiu sete curtas-metragens de ficção entre 2009 e 2012, junto com estudantes de cinema. No Brasil, colaborou como repórter e fotógrafa com diversas mídias alternativas. É autora dos livros Pietro Germi et la comédie à l’italienne (França, 2012) e Como num romance (Brasil, 2020). De Olhos Abertos é o seu primeiro documentário longa-metragem. Neste trabalho inaugural, a diretora focou-se nos relatos dos moradores de rua. Para contar a história do jornal, Charlotte utilizou essencialmente o depoimento de sua maior idealizadora, Rosina Duarte. Tanto num como no outro caso, o filme cumpre com honraria a melhor e mais importante qualidade que um documentário pode ter: saber ouvir, uma lição sempre defendida por um dos maiores documentaristas brasileiros, Eduardo Coutinho. No filme de Charlotte Dafol, as imagens das ruas de Porto Alegre, o registro dos ambientes onde vivem as populações de ruas e onde é discutido e produzido o jornal preenchem os 112 minutos de projeção. Completam esse trabalho visual a bela colocação de canções representativas da música popular brasileira, além de registro de situações pontuais da cidade que interferem diretamente na sobrevivência das populações em situação de rua. Um belo trabalho de cinema, digno de um projeto de tão elevado alcance social.

De olhos abertos é um filme para você mudar sua opinião sobre tudo que já havia pensado sobre moradores ou pessoas em situação de rua. Acima de tudo, porém, é um registro preciso de um trabalho coletivo pioneiro no território brasileiro. Por fim, e não menos importante, um filme sobre pessoas falando de suas vidas. Um filme sobre a esperança de mudar a realidade.

Bom divertimento

CULT # 483 – 16/12/2020



Informações sobre a exibição paga do filme disponível em http://www.deolhosabertos.com/ , ou na página da Alice: ALICE – Agência Livre para a Informação, Cidadania e Educação .