domingo, 20 de julho de 2008

A Esposa do Leitor

Estão sentados em um café. Chegaram cedo hoje, as horas se passaram, ele ficou na mesma posição, lendo, enquanto ela fazia o papel da dama de companhia. Este é o acordo entre os dois. Enquanto ele segue a trilha de suas leituras acadêmicas – os trabalhos importantes que tem para o dia –, ela busca a brisa leve da tarde, os cheiros ao seu redor e as boas intenções de um final de tarde que se aproxima. E promete. Hoje é o dia em que as alunas do Mestre Sisudo chegam, sentam e depois pedem orientação. O casal está em silêncio quando a primeira chega.
A rotina das quintas se completa quando elas chegam. Para o consagrado professor, esperar os alunos para uma conversa na mesa do café não é exatamente o mais correto do ponto de vista acadêmico. Mas essa foi a única forma de conciliar o trabalho nesse dia em que sai com a esposa. O resto da semana, entre livros, sério e compenetrado, ele quase não fala com ela.
A primeira aluna chega, dá um boa tarde rápido, e já sai falando sobre os progressos na pesquisa. Meia hora depois, ela abandona o professor e se entrega aos prazeres da vida: um capuccino, um pedaço de torta de chocolate e uma boa conversa. Nessa parte, é a esposa do professor quem rouba a cena, e ele se fecha nos livros. Ninguém entende o casamento do respeitado acadêmico com uma mulher tão simples. Mas ela cativa as alunas.
A esposa. O único acontecimento no pequeno mundo em que se transformou o seu casamento consiste em acompanhar o marido nas tardes de quinta. O dia em que ele concede orientação aos alunos e sai com ela. O Célebre não fala muito (há tempo eles não conversam como marido e mulher); mas também todos na universidade sabem que ele não é de muita conversa, e se fala um pouco mais às quintas é porque sabe que as migalhas de motivação que entrega aos alunos são como um bálsamo. Para sua mulher, um tédio. Ela entende o olhar cheio de súplicas das alunas; a cena lhe dá pena; o café une frustrações.
Hoje veio Rosaura. A conversa da esposa com a aluna é doce e nem de longe lembra a amargura analítica do marido; também são agradáveis os ventos que trazem o perfume delicado de Rosaura. A sensação de conforto e carinho invade a esposa do homem que lê, e ela vibra; por dentro ela vibra; a outra também. Ainda há pouco se exaltaram tanto que o velho professor ergueu os olhos por alguns instantes – rápido incômodo em sua leitura – o suficiente para se perguntar a razão da proximidade entre as duas – e esquecer isso logo em seguida. Afundado no rio de suas leituras, ele retoma a linha reta de sua ciência.
Ficaram as duas.
Ali estão. Três horas se passaram desde o fim da orientação, e o olho de uma dorme no leito fundo da outra; as duas, cada uma lendo em profundidade a alma da outra. O resultado jamais será científico.
Durante esse longo tempo, entre sorrisos fáceis, carícias ligeiras e olhares vivos, a esposa do professor imaginou que estava na hora de pedir o telefone da aluna. Quem sabe um pedaço de papel trocado por debaixo da mesa... Afinal, quem poderá ver senão elas?

1 ComentÁrios:

Blogger quasechuva said...

teorizo:
todas as mulheres, secretamente, desejam-se umas as outras.
todas nós,em silêncio, vivemos uma orgia de olhares. por isso sempre nos medimos, nos comparamos, nos sentimos inferiores a todas as outras nossas deusas. por isso, os homens nunca parecem estar a altura, porque no fundo queremos dar/comer à outra, que nos compreenda na nossa inexorável marcha a total incompletude

terça-feira, 29 julho, 2008  

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