Ponto de vista
De onde estou, espelhos. Agora que toda a cena (a gravação) está
posta diante de mim, e o movimento repetitivo e sem trégua arranca
suspiros e charcos de suor, eu vejo:
Vejo e não sei quem é ele (ou seria ela?), o meu parceiro de
gravação neste movimentado filme de estimado baixo custo.
Não sei, sabendo não fiquei.
Sei apenas que a foi grande a quantidade de drogas que usamos nos
ensaios de preparação, de modo que agora pouco importa sobre qual
cujo corpo estou cavalgando feito amazonas; a cena é longa e vai me
render as contas em dia no fim do mês.
Abaixo, Charlie. Ou seria Shirley? Confesso que me perdi em algum
plano-sequência – a ordem natural das coisas – então vieram
aqui me chamar no bar, a igreja provisória que construíram no set
de filmagem:
– Sobe ali, Iara. Vai, monta, cavalga. Grita muito. Muuuuito !
Gritava.
Era o diretor, pelo canto do espelho eu o via, e ao lado dele o
reflexo invertido de Charlie, ou Carlão, e ele se preparava para
entrar em cena – entrar nas profundezas do meu desânimo
momentâneo.
Onde Shirley?
Foi quando descobri o ser mutatis mutantis debaixo de mim.
O rosto.
Espelho.
Tédio.
Nos trinta e cinco minutos que se seguiram – o tempo de gravação
– Shirley, ou ele, ou o meu parceiro, ou o prazer disfarçado de
dor, essa transformação chamada Charlie-Shirley, estava estático,
enquanto eu estava mergulhada no cálculo seco das contas a pagar,
sonhando outros consumos, ao mesmo tempo em que ia conferindo a
mudança lenta dos traços ao redor dos meus olhos.
Meu rosto – aquele cinza agora balançando na imagem irregular do
espelho.
Independente do ponto de vista que se olhe.
Que me olhem
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