Faces desbotadas
Chegamos à meia-noite, o show estava a toda, acontecia há quase uma hora. Eu pulava de alegria. Finalmente Meu ego dissolvido na matéria em movimento. Quem disse que o show estava a duzentos por hora foi o cara ao lado. Olhou para meu primo. Gamou. Depois do nada me distribuiu um senhor chute na canela e largou esta: “Não enche, almofadinha”. De trás levei um cuspe na orelha. Grudou nos cabelos. Culpa do Otavinho. Quem é que se chama Otavinho e vem assistir um show do Fausto Fawcett? No meio da fumaça – caos. Música alta. Todos com caras de robôs efêmeros. Tinham avisado para que eu não sair de Realengo, não àquela hora. Ali não era o meu lugar. Zona Sul. Levei outro chute, e este veio quente como um direto de esquerda. Lá quatro caras pulando, agarrados, fumacê, nem olharam para mim. Depois levantaram o dedo médio para o sujeito à frente e depois derrubaram o magrão a pontapés. Um veio e socou a mão no meu traseiro. Otavinho nem aí – um Hamlet contemporâneo, estudante de arquitetura na Federal do Brasil. Me chamava de ninfeta narcótica. O sujeito nasceu em Vassoura, imagina, agora dando as cartas, há poucos anos ele nem conhecia o Rio de Janeiro e os Drops de Istambul. Ficou instalado lá em casa. Como? Aquele atraso na fala. Ele fica perplexo: realidade diluída numa tela de televisão. Eufórico, ao meu lado, ele pulava tanto que se desgarrou. Apanhei o braço, gritei: “Vão embora, Otávio”. Um empurrão. Daí me virei: atrás começaram a se beijar, começaram a se agarrar. A galera ficou excitada com a música alta. Do nada, levei uma bofetada, Desequilibrei, abracei-me no cara da frente. Aí jovem de Copacabana. Só faltou perguntar o que eu sentia, e o que eu sentia era a cabeça girar, então sou Otavinho, o meu primo é o motivo do meu ser ou não ser. Como cheguei aqui? Girei os braços, um girassol sem rumo, e não há ninguém ao meu lado. Vazio, porrada e intensa consciência da minha solidão. O primo sou eu, sim, confirmo que não há ninguém ao meu lado. Alguém grita que tenho as faces desbotadas de Cristiane F. Tudo gira, get out, no palco Fausto Fawcett grita alô polícia!, alguém vem pela diagonal quase me derruba, alô polícia!, eu imaginando que talvez os ventos uivantes sopram todos os amantes na noite de Copacabana, levo outro tapa, tento me endireitar, o passo é torto, o cabelo desarruma, a bolsa some da minha mão, tento fugir mas o homem ao meu lado é forte “o que você está fazendo, menina? Agarra forte meu braço, calma, não vai demorar”, Meu nome é Kátia Flávia, o sujeito ri, e ele é realmente grande, ou eu estou diminuindo, então tudo gira mais rápido, estou no asfalto, dou a última olhada ao redor, são muitos e eles têm muita vontade nos olhos, voam nas pessoas, grudam nas pessoas, a Lua lá em cima gira, o brutamonte está me arrastando para o beco, fizemos amor entre estrelas vigiadas, meu rosto espremido no chão e pergunto: onde as faces desbotadas de Cristina F.? Ao fundo turco camelô grita, turco camelô berra.
Agosto de 2021.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home