Rolo cheirando a saibro
O primeiro encontro foi no clube. Caminhava em meio às veredas, trilhas, árvores, bancos, acessos, quadras. O silêncio acompanhava sua leitura (livro agarrado às mãos); pessoa nenhuma ele via, nem cumprimentava, tal a concentração nalgumas páginas lidas durante o exercício regular, duas vezes por semana, nas alamedas da associação atlética daquela cidade. Dois anos morando ali, nenhum conhecido; o título social como última tentativa de encontrar parceria para uma conversa. Mas como? Ele, um eremita de solitárias leituras feitas pelas sombras das altas árvores do clube, sempre caminhando de cabeça baixa, acompanhado apenas o rastro abaixo e pelo frio de um dia de outono que o envolvia, enquanto ao seu lado vinham gritos das quadras de tênis, onde o esforço individual de superação de uns era, para ele, tão improvável quanto vão; caminhava, lia e nada ele absorvia ao redor do seu mundo fechado.
Um dia, num quase tropeço, avistou o rolo. A pequena estrutura metálica era formada de uma caixa que media algo em torno de sessenta por sessenta centímetros, deixada ao lado das quadras de tênis. Tinha dois pequenos rolos embutidos, e o encardido de saibro cor brique cobria o mecanismo e dava um aspecto geral ao aparelho de algo muito utilizado. Caminhada após caminhada, ali passava e o aparelho sempre lhe intrigara. Para que serviria? Na falta de coragem para perguntar ao funcionário que cuida das quadras de tênis, o mistério perpetuou-se por dias, longas caminhadas, extensas leituras. Dia após dia.
Até antes de ontem, o dia do primeiro encontro. Havia alguém em cima do aparelho. Com as mãos apoiadas no muro lateral, um homem passava seu calçado esportivo no rolo, repetindo a seguir o mesmo movimento com a outra perna. Arrastava o planta do pé de uma maneira que, rodando o rolo, movia a água depositada dentro da caixa (agora descobria a água dentro do aparelho). Parou, e curioso ficou a olhar o caldo escuro sendo girado. A pergunta lhe foi inevitável:
– Serve para que isso?
O suor a descer pelos braços esculpidos do outro, a roupa branca, as meias encardidas na altura do tornozelo, era um típico jogador de tênis e ele sorriu de uma forma que lhe pareceu leve, pois leve o outro respondeu:
– É para limpar o saibro que fica grudado no tênis depois do jogo. Não sabe?
– Nunca joguei o tênis.
– Está na hora de começar.
Era um convite. Houve silêncio. Seguiram-se lentos olhares de um lado; vasculhadores cantos de olho do outro.
Preso às mãos, o volume, a leitura, a concepção de tudo: aparência e essência. Nos contos de Machado de Assis, o homem vive a aparência de um espelho que mostra o que se quer ver, mas na essência esse mesmo homem se movimenta por caminhos escuros, por interesses obscuros, soterrados, profundos. Olhando o volume, o primeiro homem continuava parado, travado pelo convite (que ele sabia ter escutado), e perturbado pelo enredo que poderia levá-lo a atitudes para além das quadras, dos limites sociais do clube. E enquanto o diálogo restava travado, o livro, vício antigo, era ali um estranho ao contexto e ao lugar, e em si já bastante deslocado daquele diálogo defunto, a morrer na falta de ação, na falta de resposta, porque os dois permaneciam parados; e ainda mais estranho era o livro que continuava aberto em suas mãos, na página tal, tal era o nervosismo do dono a agarrar-se na falta de sentido da pergunta idiota – agora feita, e agora é tarde – pois somente um neófito das quadras não saberia para que serve a pequena engenhoca...
No chão, a cor do saibro; ao fundo, urros sufocados vindo de outra quadra onde uma partida era disputada até o último suspiro. Braços em movimentos, gritos sufocados, movimentos de uma manhã qualquer num clube qualquer. E as raquetes, símbolo de força e disputa ao fundo, tinham aqui a forma de uma disputa de olhares. De perguntas.
Entre os dois, alguém recomeça o diálogo pensando num próximo encontro.
– Quem sabe um café?
* * *
Ao leitor pouco importará saber quem fez essa pergunta, ou se houve olhares acompanhando mãos suadas, ou se o céu estava azul e se debaixo dele havia uma linda manhã de outono. Basta saber que alguém sacou, e quando alguém saca o jogo começa, e tudo são andamentos a partir de então. O homem por vezes é resumo dos seus instintos, mas é também o intestino do próprio homem. E se sabemos hoje que vidas correm perplexas e desamparadas nas áreas sociais da vida, nas páginas de Machado alguém sempre estão a dissimular algo, alguns fugindo de dívidas, outros a caminho da roda dos expostos, enquanto aqui fora, no mundo dos olhares semicirculares, no riscado mundo da imaginação daqueles dois, demarcado estava o uso dos mecanismos instintivos de sobrevivência; ambos já haviam iniciado seus movimentos em busca da luz, porque o céu estivera azul e era aquela uma linda manhã pueril.
O dia do primeiro encontro.
O dia do primeiro encontro.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home