sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Esses comprimidos não mentem

Porta central do consultório. Cabelos em desalinho, papel preso à mão – e os braços soltos na soltura de um alívio maior – ela sai e mergulha na claridade ofuscante que não era. Chovia, e ela precisava encontrar a farmácia.
Sempre existe uma.
Sai da loja com a certeza (agora ela tinha). Faltava apenas o último desejo: o salão de beleza. Que avistou, do outro lado, e para o outro lado atravessou, entrando feito soberana; sentando-se e exigindo tratamento de rainha; pedindo serviço completo só dispensado à alta realeza. Todos estranharam “a moça de hábitos simples”.


Duas horas depois, vieram acordá-la na cadeira mais afastada do salão. Estava fria. O animal indefeso tinha as mãos unidas, geladas, o retrato severo de uma natureza morta. A moça do centro de beleza que a encontrou soltou um grito, as colegas acudiram, todos rodearam a pequena dama, ali deitada, cujo nome – sobrenome depois descobriram – era Teresa de Souza e Silva Albuquerque, ou Teresa, ou simplesmente Tetê, uma cliente qualquer, em seguida elevada à condição de única herdeira do poderoso grupo Souza, Silva & Albuquerque, riqueza muita, espalhada pelo mundo.
As mãos estavam unidas. Preso, o corpo tinha o estado do sono eterno. No rosto, um fragmento de sorriso liso, única concessão feita ao dia, frio em emoções contida na difusão de uma prescrição médica repassada pela mecânica de um consultório também frio. Como se a garota ali sentada descobrisse a grande verdade, o prêmio máximo, o azul celeste de um céu brilhante, os passeios que nunca deu com a mãe, o sono tranquilo ao lado do pai, saudades muitas, e agora a revelação de um mundo colorido, calmo, pacífico, do outro lado do mundo, era só atravessar a rua, porque esses comprimidos não mentem.

1 ComentÁrios:

Anonymous Fal said...

Que blog sensacional. Vc escreve muito bem. Vou atrás dos arquivos. Bom sábado!

sábado, 10 setembro, 2011  

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