terça-feira, 11 de junho de 2013

A revisão

Quando ele nos chamou na varanda de nosso antigo lar, ainda usava aquele ar de calamidade que lhe era tão peculiar, então nós não estranhamos nada-nadinha. Afinal, Bel e eu já estávamos, as duas, acostumadas com as manias do Velho Aragão (uma delas, esse maiúsculo aí na frente).
Ninguém imaginou daquilo.
Ele a bradar as mãos nos bolsos, vazios, voando pelo ar escuro daquela sala mal iluminada, em seguida a correr palma da mão e a bater no peito, com estranha força e a disposição de seus 80 anos, enfim anunciando as disposições de última vontade:
Quando eu morrer, minhas filhas, façam a revisão. Devo ter deixado dinheiro escondido por toda esta casa. Não esqueçam: a revisão ter que ser minuciosa.
Nesse ponto exato, encruzilhada de olhares, nos quedamos lentamente a pensar o discurso não-ensaiado; havia a necessidade única de dar uma satisfação a nosso velho pai, sempre “com as suas coisas”, as idiossincrasias e vicissitudes tais, uma delas: esconder dinheiro por todo canto. Seria verdade?
Sim, a gente faz a revisão – disse a Mana, e aquilo foi como um alívio mútuo.
Deixamos o velho na sujeira eterna de seu decrépito apartamento. Na saída, Bel ainda brincou:
Cada ideia! Ora, dinheiro guardado...
Mal sabe ela: nada mais havia: dias atrás eu fizera a revisão por conta própria.

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