A revisão
Quando ele nos chamou na varanda de nosso antigo lar, ainda usava
aquele ar de calamidade que lhe era
tão peculiar, então nós não estranhamos nada-nadinha. Afinal, Bel
e eu já estávamos, as duas, acostumadas com as manias do Velho
Aragão (uma delas, esse maiúsculo aí na frente).
Ninguém imaginou daquilo.
Ele a bradar as mãos nos bolsos,
vazios, voando pelo ar escuro daquela sala mal iluminada, em seguida
a correr palma da mão e a bater no peito, com estranha força e a
disposição de seus 80 anos, enfim anunciando as disposições de
última vontade:
– Quando eu morrer, minhas filhas,
façam a revisão. Devo ter deixado dinheiro escondido por toda esta
casa. Não esqueçam: a revisão ter que ser minuciosa.
Nesse ponto exato, encruzilhada de
olhares, nos quedamos lentamente a pensar o discurso não-ensaiado;
havia a necessidade única de dar uma satisfação a nosso velho pai,
sempre “com as suas coisas”, as idiossincrasias e vicissitudes
tais, uma delas: esconder dinheiro por todo canto. Seria verdade?
– Sim, a gente faz a revisão –
disse a Mana, e aquilo foi como um alívio mútuo.
Deixamos o velho na sujeira eterna
de seu decrépito apartamento. Na saída, Bel ainda brincou:
– Cada ideia! Ora, dinheiro
guardado...
Mal sabe ela: nada mais havia: dias
atrás eu fizera a revisão por conta própria.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home