Um Retalho
Desde que se sentou à mesa de seu escritório, foram trinta e poucas folhas de papel. Como se fossem tentativas de chegar ao recorte exato, preciso, milimétrico: quatro centímetros e meio por quatro. Nada mais, nada menos do que um pequeno quadrado representativo. Um recorte. Um estreito retalho destacado do contexto mais amplo daquela ansiedade, enquanto o maço branco e acetinado lhe recordava o que tinha pela frente. Mero exercício, passatempo pálido e totalmente desprovido de sentido. Porém exato, limpo e objetivo como essa folha de papel que tem diante de si. Sentado na única mesa disponível dessa ampla biblioteca desde as duas da tarde, um homem recorta pequenas tiras de papel e as mede. Olha. Busca algo, não sabe, talvez saiba, alguém disse, nem quer pensar nisso agora.
A operação é simples e consiste em apanhar um papel em branco, riscar quatro linhas com a ponta do lápis, depois empunhar a tesoura, recortar. A idéia é retirar um simples quadrado, um quase retângulo de quatro e meio por quatro. Centímetros, tudo isso em centímetros, quase nada aqui fora, um monstro lá dentro. Algo tão pequeno que talvez coubesse mesmo dentro dele (absurdo pensar que não), escondido e suficientemente disforme para esconder-se, ali, na parede interna, em movimento crescente, um explorador observado nos últimos meses, em baterias de procedimentos que levaram à constatação de um volume precário e incidente, porém lancinante, por vezes variável, mutatis mutandis. Algo percorrendo o seu interior, no início em perfeito descrédito, depois crença, comprovação, no papel de que algo por dentro poderia estar. Então apanha na mão o pequeno recorte, imagina, vai, olha, observa, como se retirasse, é simples, é uma pequena folha em branco do tamanho da sua dor. Nada, e nada mais.
Isto lhe disse o médico, no início da tarde, feito Buda, imperador, verdugo, ali, sentado numa mesa repleta de receituários e encaminhamentos de baixa e outras considerações infalíveis, necessárias e urgentes, absurdamente consideradas no contexto de um monólogo executado. Falou que era coisa simples, um retalho, abre, segura firme, levanta, olha, retira, é um procedimento de rotina. Isso ele disse.
Ouviu. Quer dizer, acha que ouviu. Levantou da sala, cruzou a recepção, a secretária lhe dizendo “o senhor não pode esquecer o papel”, não ouviu, bateu a porta, nem tchau, nenhum ai, apenas mergulhou nas escadas da sua fuga. Para casa. Chega, ninguém para lhe fazer perguntas, um alívio. Tira a importância das coisas, a sensação de que não esqueceu nada, de que nada trouxe além daquela estúpida idéia. Subiu; um instante ainda ficou pensando nas palavras do homem de jaleco branco. A folha que ele lhe mostrou. A certeza. E ela vinha escrita em linhas brancas, atropeladas por caracteres pretos, escuros, prontos e preparados para qualquer tipo de intervenção – mesmo que fosse pequena. Então apanhou um maço de folha, sentou-se na poltrona, e ali ficou a tarde inteira, consumido naquele procedimento inútil, um exercício vascular repetitivo, o trabalho de encontrar o retalho perfeito entre o maço de papéis que tinha ao seu lado. Só isto: a tarefa que deu a si: a de recortar um pequeno quadrado medindo o tamanho exato de sua angústia.
Talvez amanhã fique bom.
A operação é simples e consiste em apanhar um papel em branco, riscar quatro linhas com a ponta do lápis, depois empunhar a tesoura, recortar. A idéia é retirar um simples quadrado, um quase retângulo de quatro e meio por quatro. Centímetros, tudo isso em centímetros, quase nada aqui fora, um monstro lá dentro. Algo tão pequeno que talvez coubesse mesmo dentro dele (absurdo pensar que não), escondido e suficientemente disforme para esconder-se, ali, na parede interna, em movimento crescente, um explorador observado nos últimos meses, em baterias de procedimentos que levaram à constatação de um volume precário e incidente, porém lancinante, por vezes variável, mutatis mutandis. Algo percorrendo o seu interior, no início em perfeito descrédito, depois crença, comprovação, no papel de que algo por dentro poderia estar. Então apanha na mão o pequeno recorte, imagina, vai, olha, observa, como se retirasse, é simples, é uma pequena folha em branco do tamanho da sua dor. Nada, e nada mais.
Isto lhe disse o médico, no início da tarde, feito Buda, imperador, verdugo, ali, sentado numa mesa repleta de receituários e encaminhamentos de baixa e outras considerações infalíveis, necessárias e urgentes, absurdamente consideradas no contexto de um monólogo executado. Falou que era coisa simples, um retalho, abre, segura firme, levanta, olha, retira, é um procedimento de rotina. Isso ele disse.
Ouviu. Quer dizer, acha que ouviu. Levantou da sala, cruzou a recepção, a secretária lhe dizendo “o senhor não pode esquecer o papel”, não ouviu, bateu a porta, nem tchau, nenhum ai, apenas mergulhou nas escadas da sua fuga. Para casa. Chega, ninguém para lhe fazer perguntas, um alívio. Tira a importância das coisas, a sensação de que não esqueceu nada, de que nada trouxe além daquela estúpida idéia. Subiu; um instante ainda ficou pensando nas palavras do homem de jaleco branco. A folha que ele lhe mostrou. A certeza. E ela vinha escrita em linhas brancas, atropeladas por caracteres pretos, escuros, prontos e preparados para qualquer tipo de intervenção – mesmo que fosse pequena. Então apanhou um maço de folha, sentou-se na poltrona, e ali ficou a tarde inteira, consumido naquele procedimento inútil, um exercício vascular repetitivo, o trabalho de encontrar o retalho perfeito entre o maço de papéis que tinha ao seu lado. Só isto: a tarefa que deu a si: a de recortar um pequeno quadrado medindo o tamanho exato de sua angústia.
Talvez amanhã fique bom.
3 ComentÁrios:
olha rapaz, acho que tu tah indo bem. na escrita e em cultivar a paranóia, hehehe, mas as duas coisas não são ainda melhores juntas?
Por que vc sempre escreve coisas que eu preciso ficar pensando uma meia vida, e neste tempo, o de uma vida, a inteira quase se foi?
tomara que amanhã fique bom.
tô aqui torcendo. pra que fique bom e pra que o moço depois pegue os papéis e faça bonequinhos de mãos dadas, ou aviõezinhos... ou que queime tudo e saia a passear de cuca fresca.
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