sábado, 24 de fevereiro de 2007

O Encontro

Nesta tarde cinza, Ana tem um compromisso. Fica na Rua dos Cemitérios. Lomba sem fim, ladeira da memória, depósito, enfim. Como se aos mortos não fosse dado nenhum outro direito a não ser um lugar distante e sombrio – e o único privilégio de não precisar morrer de novo. Ana desce entre pedras, tropeços e lembranças. Ela tem um encontro

Caminha apressada. Ouve seus passos na calçada, como se alguém a seguisse pela lateral do muro branco que separa aquele mundo de recordações. Resolução que tomou no início da tarde: uma visita, um ano depois. No caminho pára, lembra que precisa comprar flores. Seus pensamentos vagam pela insensatez daquele encontro. O traste.

De longe avista o portão da entrada, a administração do lugar, onde dá o nome do esquecido e pede a localização. Abandona-se mentalmente no rumo sugerido pelo mapa mental elaborado pelo senhor que tem no rosto vincos que lembram uma cova e que parece morto, sem cor. O homem indica a rua, alameda norte, terceira fileira à esquerda, jazida 38. Fácil, Ana diz para si, como se a morte fosse fácil, definitiva. Segue ao encontro do lugar. Seu coração bata, vacila, ela pára. Pensa em desistir, está perto, continua. Ao chegar ao túmulo do marido, estranha aquela presença inesperada, em traje de um preto profundo e severo a demonstrar o luto. A pessoa está depositando flores sobre a lápide.

Aproxima-se. A doce flagrância dela confunde-se com o perfume das flores deixadas ao léu. Reconhece o perfume – o mesmo que um dia encontrou embrulhado como um presente nas coisas do falecido, agrado sem dono deixado pela morte prematura.

A mulher que estava parada diante do túmulo de Carlos, o marido, sente sua presença; vira-se. Por um instante tem os olhos fixos no par de alianças que Ana usa na mão esquerda. Tem o olhar perturbado, estático, perdido no deserto incerto de uma dúvida que não consegue segurar:

- Esposa? Não sabia que ele era casado...

Aquela pergunta sem resposta corta o silêncio frio do lugar, atinge Ana, uma agonia sem fim, como o grito de um pássaro que se ouve adiante, ecoa, sozinho.

As duas paradas, elas apenas se olham.

Um gosto de lírio murcho na boca. Ana esmaga o ramalhete que traz preso às mãos. Dá alguns passos, aperta ainda mais as flores, e então olha para o firmamento: um céu pesado, cor de chumbo. Olha como se buscasse fôlego para dizer:

- Devo ter errado de túmulo... este cemitério... enorme.

Recua. Os passos de Ana são lentos, indecisos, dobra a alameda, a seguir outra, vontade de correr pelo mundo, mas ela pára, respira, olha de novo para o horizonte: malhas cinzentas em fundo vítreo, enquanto aqui embaixo seus olhos estão secos, duros, feito pedra depositada no chão.

Um aperto. Tudo quieto e frio. A brisa lenta traz o cheiro das flores. O revoar de um pássaro lembra Nosferatu. Deitado diante da outra, esse demônio íncubo lhe tira o sono. Desespero que lhe abate, trazendo à memória de Ana os gritos do marido, uma rocha dura negando até o fim. A crueldade de pensá-lo na imagem do verme em que se transformou, ali, adiante, deitado.

Parada em frente a um túmulo simples, anônimo, desprovido de qualquer tipo de adorno ou inscrição, Ana deposita as flores amarrotadas, natureza morta, desmaiada e incerta, como suas mãos e seus pensamentos neste momento.

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