sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Vai descer?

MEMÓRIAS OBSCENAS
O balanço das impaciências. A irritação frenética das pessoas. Lembro disso agora que me encontro neste lugar, o lagarto prateado em que se movem desconfortos e ignorâncias, cuja lembrança me vem agora porque recordo que foi este o principal veículo dos meus passeios e deslocamentos durante boa parte da minha pré-adolescência, quando eu adquiri a provisória independência e uma vontade de descobrir o mundo.

Aquele mundo, lembro agora, era bastante apertado e sugestivo.

No início, entretanto, significava liberdade. A possibilidade de sair para a rua, chegar longe, sem depender de meus pais. Dar uma volta na cidade, ruar como dizíamos. Eu morava na periferia, e era preciso um longo deslocamento para ir de um lugar a outro, para descobrir ali fatias do mundo que depois se tornaram chatas e repetitivas: o barzinho do centro, o clube da moda, o lanche todo sábado à noite, a dança do outro lado da cidade; foi assim até eu conseguir a liberdade de chegar às calçadas da capital. Porto Alegre ficava a poucos quilômetros de nós, mas a sensação de estar ganhando o mundo era maior. Era apertado.

Vivi a intensidade desses primeiros deslocamentos como alguém que não tem compromissos com escola e trabalho, mas como um quase adolescente que descobria nas ruas e nos prédios o colorido cintilante de uma metrópole feita de espaços a serem conquistados. De gente. Neles, eu desenhava a minha capital ao mesmo tempo em que descobria sozinho aquela parte da cidade que jamais seria mostrada pelos meus pais, tão ocupados que estavam em seus afazeres. Viajando sozinho para todo lado, minha liberdade consistia na possibilidade de puxar a campainha (ela ainda não era acionada) e descer no ponto em que bem entendesse. Dali, anos depois, caminhar para o meu mundo de bares e calçadas, cambalear noite à dentro, os passos tortos de um jovem que se afunda nas luzes da noite, invade a madrugada, chega pela manhã em casa. Havia, contudo, o quotidiano, ir e voltar da escola todo dia, e um certo blá-blá-blá.

No dia-a-dia, tudo era muito diferente. Cinzento. O bairro em que morava era de trabalhadores. Todos precisam usar o mesmo veículo para seu transporte diário, e o encontro das coletividades nem sempre era tão aprazível e recomendável às sete horas da manhã. Havia cheiros: banhos, marmitas, suores. Surgiram ranços. Muitos empurrões. E outros balanços. Alguém sempre vinha empurrando quando queria descer. Impaciente, eu precisava perguntar:

- Vai descer?

Mesmo assim, a pergunta era pertinente, hoje entendo. Afinal, ficavam todos postados na saída do veículo, irracionalmente aglomerados, reduzindo o espaço de saída na única porta de desembarque, enquanto lá atrás o corredor do carro restava vazio. Era um empurra-empurrra desnecessário e desconfortável na saída, todos juntos, eu não entendia. Fico imaginando hoje que talvez fosse o único conforto de alguns para enfrentar as manhãs geladas aqui do Sul.

Foi andando de ônibus que descobri o epicentro do meu desconforto: a impossibilidade de suportar coletividades, as grandes aglomerações. Mesmo que fosse preciso ficar junto, esquentar, o frio lá fora, a geada abrindo a manhã que se levanta.

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