sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

As Duas Gôndolas

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA
O jogo é um meio de transporte. Entenda o leitor da maneira que quiser, esta frase traz em si todas as significações pertinentes ao mundo do futebol. Tomada na sua literalidade, ou compreendida como uma metáfora, toda partida de futebol é uma forma de transporte. Nunca vi a crônica esportiva tradicional analisar uma disputa futebolística dessa maneira, mas enfim, tudo sempre tem a primeira vez. O jogo é uma forma de superação do momento. Analisado em seu aspecto mais dinâmico, interativo e mercantil, ele é uma forma de carregar emoções, transportar corações, despachar sentimentos. Na sua dinâmica interna, ali, suado, jogado, disputado, o jogo de futebol pode ser visto como um transporte: quando entram em um campo de várzea para jogar futebol, os jogadores saem em busca da bola e da realização: todos querem ser transportados para a glória do belo gol feito, da jogada de esteta ou da defesa extraordinária. Poucos conseguem unir tudo isso ao mesmo tempo. Falo dos goleiros.

O jogo de ontem. Como posso comentar o jogo de ontem se durante um bom trecho da partida os jogadores se movimentaram na cancha como ferro carril, disputando bolas como uma locomotiva, desmontando defesas como um cargueiro ou conduzindo a pelota de pé em pé como se estivessem dirigindo numa auto-estrada. Sim, amigos, uma partida de futebol pode ser interpretada sob vários ângulos; no jogo de ontem, fiquei com a impressão de que todos buscavam a beleza do tele transporte, traduzido naquela jogada que partindo dos pés do zagueiro encontra o meio-de-campo livre e este, numa tabela rápida, invade a área, dois três toques, é gol. Lindo de ver como uma partida pode ser entendida como um sistema de transporte em pleno funcionamento. Da carga ao destino, quatro passes e um bonito gol. No jogo realizado ontem nos campos da Confraria Futebolístico-Literária Olavo Bilac – Coflob, isso aconteceu. Uma. Duas. Várias vezes. Todos buscavam a beleza de um passeio de gôndola, e tal como o personagem criado por Thomas Mann “Morte em Veneza”, o solitário, obcecado e atormentado escritor alemão, todos em campo ontem buscavam encontrar O Belo. A jogada triunfal.

Antes que isso acontecesse – o jogo foi bonito de ser visto –, a partida teve suas aberrações e instabilidades. Sempre tem. O leitor dessas crônicas já sabe que em determinado momento do texto eu abandonarei a infrutífera tentativa de criticar a crônica esportiva convencional, que a certa altura da narração deixarei de lado os fatos concretos do jogo (a disputa em si) para me concentrar no grotesco e fantasmagórico – no show de horrores. E qualquer um que vive o mundo do futebol amador sabe: o insano está presente, a cada duas, três, no máximo quatro seqüências de jogadas, e lá aparece ele. O inusitado. O impensável. O inexplicável. A falta de sentido no transporte, sensação de entusiasmo e de arrebatamento que toma conta de alguns. Como nossos dois goleiros, os gondoleiros, a nos transportar em direção ao trágico. Os dois atletas que ontem, vestindo a camisa número um de seus times, protagonizaram cenas de rara beleza plástica em belas defesas de bom alinhamento, aprumo e precisão; mas que no início da partida, ali, no momento em que nossas gôndolas partiam (o início do jogo) para um passeio nas águas escuras de uma Veneza sombria, descrita com fascínio e terror por outro escritor, Edgar Allan Poe, nossos goleiros, cada um à sua maneira, abandonaram o sentido refinado do jogo e entregaram os dois primeiros gols. No primeiro deles, um chute na trave rebate e volta, depois bate nas costas do goleiro e entra; no segundo, uma lambança coletiva que parte das mãos do arqueiro do time adversário, a soltar a bola nos pés dos atacantes adversário como se perdesse o remo em mar calmo. Duas instabilidades.

Duas jogadas em que as gôndolas presentes em campo ontem encontraram o fundo do canal veneziano, perdidas que ficaram, por segundos, na escuridão daquelas águas barrentas.

Porto Alegre, 9 de fevereiro de 2007.

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