A garota do vigésimo quarto andar
Para K.
É a sétima vez que ela retorna do banheiro. Contei (acredite, contadores fazem isso o dia inteiro). Incrível, mas a garota da janela do vigésimo quarto andar do prédio ao lado já foi ao banheiro sete vezes nesta manhã que nos separa, de um lado sua mesa cheia de trabalho, do outro, minhas fantasias perdidas entre números. O chefe já me repreendeu e mais uma vez disse que não devo procurar diferenças no invisível, muito menos na vizinhança. Sinto que ele está de olho na mentira que é o meu trabalho, mas eu também sei que ele esconde não só diferenças, mas negócios escusos em telefonemas silenciosos dentro de salas fechadas. No outro prédio, ela, a única luz neste mar cinzento de arranha-céus, cobranças e fechamentos, hoje ela está diferente. Notei que, como em outros dias, toda vez que volta do banheiro, caminha esfregando o nariz. Daqui, de atrás da cerca de vidro que me protege, fiquei a imaginar em minha cabeça de agrimensor de números: gripes, resfriados mal curados, alergias perpétuas, carpetes infestados de ácaros, ar-condicionado entupidos, a pressão no trabalho, o medo de despedida ou algum namoro rompido (eu sou mesmo criativo com as probabilidades de tentativa e erro). Nada disso. A exatidão é outra: é dela. Enquanto isso, erro na soma de tudo, e os meus constantes erros são objetos do apressado do meu chefe que, sem explicação, para diante de minha mesa, criatura insistente, mãos na cintura, sempre falante, os movimentos rápidos e autoritários (ele está me solicitando o fechamento do relatório até o final do dia). Nem escuto, só concordo. Meu pescoço é um organismo a servido da Contabilidade e da concordância em gênero e número. Ele fica ali, estátua da impaciência, deselegante ao completo. Sim, por trás de seu terno vintage despojado vejo Karla (imagino que deva ser este o seu nome), mas o chato e inconveniente do meu chefe continua ali. Reparo que ele também leva a mão ao rosto e coça o nariz com frequência, e isso me lembra que talvez eu seja o único desprovido de vícios neste escritório. Do café ao donuts, passando pelas horas extras intermináveis, todos aqui têm uma queda pelo abismo. Os passageiros da escuridão. A minha perdição tem endereço: as janelas do 24º andar. O meu único interesse é olhar Karla. (Alívio: o gerente das contas prontas sai da sala.) Na janela defronte, ela se levanta de novo; sua necessidade é o meu delírio. Torço para que ela siga pelo melhor traçado, e volte com a alegria renovada de quem trabalha entediada o dia inteiro em uma sala do vigésimo quarto andar. Porque depois eu já sei: sai no início da noite, caminha até a estação, são nove paradas de metrô, algumas quadras a pé, ela sempre chega sozinha em casa.
Hoje não poderei segui-la. Por certo, o homem do terno chumbo não vai me liberar antes das nove.
É a sétima vez que ela retorna do banheiro. Contei (acredite, contadores fazem isso o dia inteiro). Incrível, mas a garota da janela do vigésimo quarto andar do prédio ao lado já foi ao banheiro sete vezes nesta manhã que nos separa, de um lado sua mesa cheia de trabalho, do outro, minhas fantasias perdidas entre números. O chefe já me repreendeu e mais uma vez disse que não devo procurar diferenças no invisível, muito menos na vizinhança. Sinto que ele está de olho na mentira que é o meu trabalho, mas eu também sei que ele esconde não só diferenças, mas negócios escusos em telefonemas silenciosos dentro de salas fechadas. No outro prédio, ela, a única luz neste mar cinzento de arranha-céus, cobranças e fechamentos, hoje ela está diferente. Notei que, como em outros dias, toda vez que volta do banheiro, caminha esfregando o nariz. Daqui, de atrás da cerca de vidro que me protege, fiquei a imaginar em minha cabeça de agrimensor de números: gripes, resfriados mal curados, alergias perpétuas, carpetes infestados de ácaros, ar-condicionado entupidos, a pressão no trabalho, o medo de despedida ou algum namoro rompido (eu sou mesmo criativo com as probabilidades de tentativa e erro). Nada disso. A exatidão é outra: é dela. Enquanto isso, erro na soma de tudo, e os meus constantes erros são objetos do apressado do meu chefe que, sem explicação, para diante de minha mesa, criatura insistente, mãos na cintura, sempre falante, os movimentos rápidos e autoritários (ele está me solicitando o fechamento do relatório até o final do dia). Nem escuto, só concordo. Meu pescoço é um organismo a servido da Contabilidade e da concordância em gênero e número. Ele fica ali, estátua da impaciência, deselegante ao completo. Sim, por trás de seu terno vintage despojado vejo Karla (imagino que deva ser este o seu nome), mas o chato e inconveniente do meu chefe continua ali. Reparo que ele também leva a mão ao rosto e coça o nariz com frequência, e isso me lembra que talvez eu seja o único desprovido de vícios neste escritório. Do café ao donuts, passando pelas horas extras intermináveis, todos aqui têm uma queda pelo abismo. Os passageiros da escuridão. A minha perdição tem endereço: as janelas do 24º andar. O meu único interesse é olhar Karla. (Alívio: o gerente das contas prontas sai da sala.) Na janela defronte, ela se levanta de novo; sua necessidade é o meu delírio. Torço para que ela siga pelo melhor traçado, e volte com a alegria renovada de quem trabalha entediada o dia inteiro em uma sala do vigésimo quarto andar. Porque depois eu já sei: sai no início da noite, caminha até a estação, são nove paradas de metrô, algumas quadras a pé, ela sempre chega sozinha em casa.
Hoje não poderei segui-la. Por certo, o homem do terno chumbo não vai me liberar antes das nove.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home