quarta-feira, 17 de julho de 2013

Almoço na Piedade (Domingo de manhã)



Fome. Um caminhoneiro tem muita fome. Já tive Três dias inteiros viajando – bolachas, salgados, rebites, refrigerantes quentes, tudo na boleia, sem parada ou perdão – aí chega uma hora em que é preciso parar, abrir a cozinha e fazer uma comida decente. Almoço de verdade. Chama-se piedade.

Domingo.
Manhã.
Silêncio ao redor.
Nenhuma viv´alma num raio de quilômetros.
Um caminhão (45 toneladas).
E aquele casal.

Vejo tudo isso  de onde estou, aqui, de trás deste gradil de ferro, portão, passagem sem volta que me separa do resto do mundo. Dos outros.
Faz tempo.

E tempo é o que mais tenho, agora, recolhido, solitário e impossibilitado como estou. A única atração por aqui: observar os que chegam, carregados ou não, os que aproximam, esvaziados ou não, e que tentam inutilmente fugir, por espasmo ou espanto; os que mesmo assim ainda conseguem ir embora (nem todos têm a mesma sorte).

Chegaram. O motorista aciona os freios, os gritos que rompem a quietude do lugar; ele estaciona a carreta ao lado do extenso muro lateral. Descem. E é com surpresa que noto o enorme contraste entre o encardido dos dois, em roupas de lugares distantes, em jeans rotos e desbotados, e ao lado o muro branco religioso e quase puro da Piedade. Descem e vão direto para os baixios do reboque, onde abrem a grande caixa da qual surgem pratos, panela; fogo, fogão; outro tanto de esperança.

O almoço, carreteiro.
A fome, a de uma vida inteira.

Apuro o ouvido – e a pouca audição que me resta neste retiro de silêncio sepulcral ainda me permite escutar.
Ela:
– Lugar esquisito, meu velho, este que tu escolheste para cozinharmos. Cruz-credo !!
Ele, e há impaciência no maneio de cabeça que faz o velho caminhoneiro:
– Prefiro longe de gente, te falei quantas vezes criatura? Jesus... Maria! Soy gaucho loco!
Ela a resmungar outros domingos, sempre em casa, espera sem fim; ele viajando por não se sabe onde, quem sabe: churrascos, parcerias, longas tardes de vinhos; outros tempos. Agora velhos e sozinhos neste lugar ermo e desendereçado.

E estão. Aqui não tem gente não. Todos se foram, e os que ficaram perambulam pelas alamedas, dão voltas por esta construção retangular; ou simplesmente ficam a olhar pelas grades na esperança de serem vistos. Almas errantes. Almas penadas. Moradores. Do lugar cujo nome está escrito na placa acima – ferro, fria – portão fechado em que me encontro:
           Cemitério da Piedade.

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