Aquele casal
Alimentando os meus ouvidos estavam, além da música clássica dos
1080 da Rádio da Universidade AM, os pequenos cuspes da surdina
tosca de uma velha kombi parada ao meu lado na sinaleira
(inconfundível som da minha infância). Aquilo me irritou
profundamente porque eu não entendia o porquê de o motorista
acelerar de forma tão intensa e insistente, a produzir níveis
inacreditáveis de decibéis às 9 horas da manhã, ali, no centro
horripilante desta falsa metrópole de planejamentos nada
estratégicos e congestionamentos pouco analgésicos. A música,
sufocada – e eu não pude deixar de perceber o quanto aquele
barulho lá fora estava me desconcentrando, uma vez que os vidros eu
deixo sempre abertos nesses dias de céu limpo e temperaturas
amenas, propícios para extensos e despreocupados passeios de carro –
e eu lembrando mais uma vez nos últimos trinta minutos que eu estava
indo para o trabalho não para o campo... E enquanto no rádio tocava
alguma sonata de Brahms para clarinete em dó maior, era a outra a
dor a rasgar os meus ávidos ouvidos, e tudo isso só cessou quando
eu me virei e descobri que não era apenas uma caminhonete
utilitário, mas sim um desses motorhome utilizando em viagens
e acampamentos. A minha surpresa, então, foi logo transferida dos
ouvidos para os olhos, virando a seguir fascinação no momento em
que reparei no rigor do traje de passeio do casal de idosos que
dirigia aquele veículo adaptado. Este mesmo instante em que esqueci
a música, o trânsito pesado à minha frente, o filme de terror que
são essas calvários urbanos, sinaleiras, buracos, o idiota da
frente, o idiota de trás outrossim (como gostam de outrossim os
idiotas) e esquece até os meus compromissos entediantes de um dia no
escritório da contabilidade do décimo nono andar e passei a
percorrer o suposto trajeto das tantas viagens daquele casal.
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