sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Aquele casal

 Alimentando os meus ouvidos estavam, além da música clássica dos 1080 da Rádio da Universidade AM, os pequenos cuspes da surdina tosca de uma velha kombi parada ao meu lado na sinaleira (inconfundível som da minha infância). Aquilo me irritou profundamente porque eu não entendia o porquê de o motorista acelerar de forma tão intensa e insistente, a produzir níveis inacreditáveis de decibéis às 9 horas da manhã, ali, no centro horripilante desta falsa metrópole de planejamentos nada estratégicos e congestionamentos pouco analgésicos. A música, sufocada – e eu não pude deixar de perceber o quanto aquele barulho lá fora estava me desconcentrando, uma vez que os vidros eu deixo sempre abertos nesses dias de céu limpo e temperaturas amenas, propícios para extensos e despreocupados passeios de carro – e eu lembrando mais uma vez nos últimos trinta minutos que eu estava indo para o trabalho não para o campo... E enquanto no rádio tocava alguma sonata de Brahms para clarinete em dó maior, era a outra a dor a rasgar os meus ávidos ouvidos, e tudo isso só cessou quando eu me virei e descobri que não era apenas uma caminhonete utilitário, mas sim um desses motorhome utilizando em viagens e acampamentos. A minha surpresa, então, foi logo transferida dos ouvidos para os olhos, virando a seguir fascinação no momento em que reparei no rigor do traje de passeio do casal de idosos que dirigia aquele veículo adaptado. Este mesmo instante em que esqueci a música, o trânsito pesado à minha frente, o filme de terror que são essas calvários urbanos, sinaleiras, buracos, o idiota da frente, o idiota de trás outrossim (como gostam de outrossim os idiotas) e esquece até os meus compromissos entediantes de um dia no escritório da contabilidade do décimo nono andar e passei a percorrer o suposto trajeto das tantas viagens daquele casal.

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