domingo, 19 de novembro de 2006

Epicentro Primaveril

Rodando, são corpos e cabeças, uma suspensão contida no ar. É leve o movimento desses corpos. Lembra uma dança, um vôo de asas coloridas, mas é impossível que alguém esteja dançando ou voando, ali, no meio da rua, trajando terno e gravata, vestindo outros bordados. Pode-se dizer apenas que é um vento primaveril que bate nos prédios e encana nesse corredor frio, atingindo essas necessidades urgentes no meio da calçada de uma rua qualquer do Centro movimentado de uma cidade qualquer – desde que seja primavera – essa a única exigência – ali um homem rodará em si mesmo o giro exato de seu desejo. Seu movimento será lento, calculado, como se não tivesse pressa nem fim, e vai demorar o tempo exato de um rodopio no próprio eixo, espécie de movimento rotatório, redemoinho, turbulência perdida no vôo executado entre um quarteirão e outro. Tudo acontecerá de maneira silenciosa e reflexiva, como se não existissem corpos, como se não existissem cabeças pensando (ou corações sentindo). Esse homem que roda encontrará o epicentro primaveril dos seus impulsos, e como um cão que uiva para a lua às três horas da tarde, movimentará levemente os seus lábios, decidido. Ele dirá “oi” e nada mais.

A imagem que se forma é de uma pintura: tela branca preenchida lentamente durante anos de desejos não compreendidos. Primeiro, é um ponto distante que vem entrando na calçada, aquele corpo, a base lapidar e móvel de todo esse encantamento. Inicialmente indefinido, esse ponto torna-se-á depois sugestivo, um tanto convidativo, e por fim todo esse conjunto se consolidará no cérebro desse homem na forma perfeita e acabada de uma obra de arte. Sabe o potencial que terá à sua frente, a pouco passos, daqui a pouco, no momento em que ajustar o foco e definir o centro de seu interesse. Então não será mais possível desconcentrar-se, nem retroceder, porque tudo passa. A vida. Passa um, passam dois, passam várias. Ele fica, mesmo flutuando (como está) ele quase pára, olha.

A seguir virá o ímpeto, a vontade, o grito contido de alguém sozinho que caminha a ermo no meio da selva de pedra. Esse homem busca dois segundos de um olhar – só dois segundos. O tempo que não terá (por que será que é sempre assim?). Por isso ele vai procurar naquele olhar algo que lhe dê esperança, mas sabe, não pode, discrição é tudo. E mesmo sendo vital o contato, ele precisará ser lento e ao mesmo tempo esvoaçante, um pouco como a sede de seus impulsos... Essa vontade, ela agora passa. Sabe que de alguma maneira precisa habitar o deserto que há em si, romper enfim as amarras, e então ele simplesmente pinta. O perfume dos cabelos chega primeiro e estabelece as linhas inicias da pintura.

Chegará então o grande momento: a passagem. Serão poucos e preciosos segundos em que o estupor do momento deixará rastros de ilusão, algo como um calor perseguindo as partes do corpo, de um lado para outro. O movimento, o desejo do contato, a sensação de estar tão próximo, de pertencer àquela outra, tudo isso o levará até o limite, mas tudo não passará desse limite... Ele partirá sozinho para casa mais uma vez. Sensação de que o vento foi embora levando consigo as forças contidas e reprimidas.
Ficará somente a réstia, pedaço de memória, pétala caída, perdida. Um doce perfume que segue feito um rastro que se renova, feito o vento. Ficará aos seus olhos a nítida sensação de que algo se desprendeu, e que o epicentro primaveril que ainda a pouco passou por ele deixou preso no ar o desenho perfeito das asas de uma borboleta que voa, sim, ela voa porque é primavera.

4 ComentÁrios:

Blogger Vinícius Mariano said...

dois segundos... tão pouco pode ser tão muito. o essencial. e isso de não de apenas desejar, mas de ser borboletas e primaveras.

quarta-feira, 22 novembro, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Gostei demais de mais este teu texto, ED. Ótimo.

segunda-feira, 27 novembro, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Cada vez melhor, Dêga...

segunda-feira, 27 novembro, 2006  
Blogger fao Carreira said...

muito muito bom

quinta-feira, 30 novembro, 2006  

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