domingo, 15 de outubro de 2006

A Cobrança


Os ouvidos eram duas peças mecânicas a serviço da patroa. A madrugada marejava nos olhos. Noite longa.

Do outro lado do balcão, dedos firmes sobre a fórmica lisa, o rosto da dona do estabelecimento ficava mais rígido, aos poucos iluminado pela luz das oito horas da manhã. Cavado pela madrugada afora, mesmo o rosto de quem dirige o negócio sofre com o excesso de luz dos primeiros raios do dia. O olhar é seco, direto. A ordem tinha um tom que não permite contestação. Ríspida, a voz metálica lhe diz:

- Você é a última que chegou... Vai. Até o início da noite de hoje, quero o dinheiro aqui, nota por nota, nada de cheque; se ela tiver verdinhas em casa melhor.

Foi para casa dormir.

Do outro lado da cidade, a dona de uma mansão está percorrendo os olhos pelos jardins de sua casa, e ali enxerga o silêncio das horas, a solidão. Alguém bate à campainha.

Eram os empregados da fábrica. Trazem o corpo do marido, tão caído parece morto. Chegou quente: o sol lá fora e o esforço coletivo em arrastá-lo deixaram a massa corporal aquecida, como se tivesse saído de uma sala fechada há pouco. Camisa aberta florida em detalhes cafonas, o rosto ainda vermelho, as calças amarrotadas em desalinho e os sapatos levemente fora do pé formavam um quadro de brisa, um leve sopro, descontração que contrastava com o odor forte de 12 anos típico do Tennessee - seu bafo inebriava a casa. Foi deixado no quarto do casal. Ali ficou, no seu estado líquido, roncando, mergulhado na cama. Quatro noites fora de casa. Agora ali, deitado, roncando, atirado, indefeso. Ficará na mesma posição até o final da tarde, quando então a esposa entrará no quarto silenciosamente em busca das notas. Será necessário, para que o pagamento possa ser realizado. A dificuldade, contudo, estará no cofre, que fica do outro lado da cama, e será preciso muita técnica para contornar as pernas atiradas do marido e o forte hálito que sufoca o quarto. Tudo isso no escuro – claro – pois quando entrar no quarto novamente serão cinco horas da tarde, é importante não acordá-lo. Não àquela hora. Só depois. Para contar do pagamento. Explicar. Por que precisa explicar se o marido não lhe dá nenhuma satisfação?

A garota dos ouvidos mecânicos chega, bate no portão, chama a moradora da casa, mas é a vizinhança que espia, espreita, quer saber quem é no fim das contas aquela moça que bate à porta dos Marques Rabello – e vestida naqueles trajes, cabelo, pintura, como se estivesse pronta.... Pronta para algo, na certa um encontro, mais tarde – a dama do Camafeu – e quando o dia se fizer noite e a madrugada entrar dia afora, ela entregará tudo que ganhou à dona. Agora, ali, no meio da tarde, veio em busca do pagamento. A briga e o estrago da noite passada custaram caro ao marido.

A Senhora Marques Rabello flutua pelo quarto, busca a chave (o marido só confia a ela o dinheiro), abre o cofre, retira de lá a quantidade exata do delírio. Busca forças para compreender. Até quando o marido fará aquilo? Fecha, dá a volta, tranca. Quantas ainda serão as noites que terá que passar em claro esperando sua volta? Quinhentos dólares. E depois saber pelos empregado que o patrão ficou por lá.... Com as notas contadas na mão, caminha lentamente até a sala. A moça do camafeu de pernas cruzadas, insinuante. Chega como quem busca respostas, mas sabe, não pode perguntar. Faz parte do pacto que fez com a dona do estabelecimento. Estende a mão – a outra agradece.

A voz é rouca, o olhar lhe devora. Sabe, conhece. Um dia ela também precisou muito olhar seus clientes de uma maneira sutil e ao mesmo tempo mercantilista. Por isso estende uma nota a mais, que explica, ficará para a outra.

1 ComentÁrios:

Blogger quasechuva said...

coooollllllll
encontrando o caminho da narrativa
do gostando de ver seo ed

terça-feira, 24 outubro, 2006  

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