quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Bilhete


As palavras têm um gosto doce:

- Bom dia!

Ela sempre consegue dar a mesma intensidade ao cumprimento cordial da manhã. Um bom dia sonoro. Cheio de exclamações.... flores, jardim florido. Há doçura nas suas palavras, no seu jeito; sua pessoa é assim, e por isso contagia os colegas. Quer dizer, quase todos. Pelo menos é isso que fica pensando depois que ele entra na sala, passo firme, duro, olhar fixo em algum ponto obscuro que ela desconhece. Mas quem é a pessoa ali, na empresa, que o “conhece” verdadeiramente? Ninguém. Por isso, todos o toleram, relevam o seu jeito. E ela segue no trabalho, abandonada, afundando na cadeira, feito um barco em dia de naufrágio. No dia de afogamento. Sente-se sufocada, imobilizada, olhando-o chegar, ali sentada. Porque hoje ele entrou de novo com aquele olhar, e ninguém conhece “aquele olhar”. Ninguém conhece nada dele. Só as instabilidades, soltas, avulsas, perdidas. A sala parece um oceano de instabilidades. O silêncio cadencia os poucos movimentos.

Ele entra. Atravessa a sala como quem caminha irrompendo o Mar Vermelho, mas a imagem não é bíblica – é antes a fotografia de alguém que está distante, rosto estático, olhar parado, profético, muito longe dali. E quando vence os poucos metros que separam sua mesa do hall de entrada, ele chega lentamente, e como um banhista que assoma à praia, senta e não responde ao expedito cumprimento da colega, ela, ensolarada como a linda manhã de primavera lá fora.

No silêncio de quinze minutos que se segue, ainda sentada, ela ficará pensando como é difícil entender aquela criatura em suas oscilações (o mar revolto), e talvez, como os outros colegas, releve aquilo tudo porque deve existir algo de maravilhoso naquele ser humano que parece, mais uma vez, ter entrando em ruínas naquela sala. Trancado por dentro. Acorrentado. Um afogado – a imagem é de um afogado. Mas como alguém pode estar pedindo ajuda em dia tão esplêndido aos olhos de qualquer um que tenha vindo da rua, principalmente se você viu, viveu o dia lá fora. O silêncio dura exatos quinze minutos.

O tempo necessário para que ele, pela enésima vez naquela manhã, repensar todo seu comportamento, sua vida, os acontecimentos desagradáveis com os amigos na noite anterior, enfim, sua indiferença diante das adversidades, sua impaciência diante do humano (demasiado humano), a vontade de terminar tudo muito rápido; e ali, quando já estiver sentado em sua mesa, silencioso, sinta-se como alguém à deriva, uma pessoa que pelo seu comportamento só consegue deixar os outros soltos, sem referência, náufragos sem um porto seguro ou tábua de salvação; perdidos todos nas difusas cavernas espanejadas nos abismos das algas que ele cria – aquela peneiração salitrada do mar que tanto nos dá sede - e oprime.

Após esse tempo, ele levanta, caminha, assoma o fundo do mar, mergulha. Vence as três mesas que separam ambos (ele e a colega estão sozinhos na grande sala) e nadando como se estivesse a vencer o dorso de uma onda que quebra, ele pára atrás dela, respiração cansada, quer entregar algo. Precisa do gesto e traz na mão um pequeno papel – o bilhete de um afogado – onde está escrito seu pedido de socorro, deixado sobre a mesa de sua colega de trabalho, dizendo apenas:

“Bom dia.”

3 ComentÁrios:

Anonymous Anônimo said...

não é difícil compor as cenas...até que ponto a ficção se confunde com a realidade...difícil é construir a ponte entre os abismos. Gostei.

quarta-feira, 18 outubro, 2006  
Blogger Vinícius Mariano said...

é...
difícil é construir a ponte entre os planetas, e seus abismos. Haja humanidade.

adorei "A sala parece um oceano de instabilidades". Bela imagem!

sexta-feira, 20 outubro, 2006  
Anonymous Anônimo said...

Que tal a simplicidade apenas de um olhar, que perpassa o escudo transparente, frio, azul, cinza...

segunda-feira, 22 janeiro, 2007  

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