domingo, 8 de outubro de 2006

O Sonho do Pequeno Goleiro

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA


Temo que escrever é exercer o limite das coisas. Penso isso enquanto imagino que a grande contribuição da crônica está justamente no lugar onde ela pode ser mais definitiva, tanto para quem lê como para quem escreve: captar o que acontece vivendo-se cada coisa. Todo texto é assim – lição que aprendi mergulhando nos textos de Clarice Lispector. Mas como transportar toda essa sensibilidade – registrar em palavras as impressões de um acontecimento vivido emocionalmente – sem perder-se na irrelevância do relato? Dúvida cruel. Da qual pode surgir, em forma de texto, todas as possibilidades do cronista. Esse é, contudo, um trabalho de carpintaria. Um neutro artesanato de vida. O bom texto é aquele que capta o instante-já, o agora-agora, no qual o registro do vivido pelo autor seria melhor se sua sensibilidade conseguir percorrer os caminhos que se escondem “atrás do pensamento”, e tal como no poema em prosa de “Água Viva”, atingir a diluição humana. O demasiado humano. A matéria do sonho.

Imagino essas coisas quando lembro os fatos de ontem. Nosso jogo semanal realizado em plena tarde, quando a leveza de um futebol moleque às 4 horas de um dia compassado de primavera foi vivido no calor de uma partida bem jogada, enquanto lá fora a brisa animava nossos sonhos noturnos.... Sim, um jogo em que todas as peças estavam funcionalmente perfeitas, bem postas em campo, como se tivéssemos combinado tudo antecipadamente, e foi assim que o jogo fluiu. Bonito jogar com vontade, jogo disputado, na lealdade, e como sempre acontece em nossas partidas, sempre surgem aqui e ali pequenas obras-prima de estranheza – o bizarro de alguns gols acidentais e jogadas inusitadas.

Meu jogo, contudo, foi outro. Eu sempre me transporto das quatro linhas do campo e fico sonhando. Chego para jogar e logo em seguida vejo que já estou flutuando numa atmosfera etérea, imaginando que naquele dia eu não tomarei nenhum gol, que jogarei uma bela partida de futebol, não decepcionarei meus companheiros de equipe, etc. Os gols sempre acontecem, mas têm vezes que eu jogo bem. Ontem foi assim. Talvez tudo fosse por causa daquilo. Do fato ocorrido. Porque quando cheguei ao ginásio, um menino bem pobre batia bola com meus amigos. Estava no gol. Logo vi que ele é daqueles que gosta de defender – no sangue de todo goleiro há um componente suicidada que ele despeja no empapado da grama cada vez que se joga com determinação na bola – e ali estava o menino voando. Esforçado. Jogando-se em todas as bolas como um artista da fome em busca de reconhecimento. Impressionando tanto a todos (creio) que acabou sendo convidado para jogar um trecho.

Mas quando ali cheguei, logo que o vi batendo bola, a primeira coisa que perguntei a ele era se não queria uma das minhas luvas emprestadas. Tímido, me disse que já tinha uma. Olhei suas mãos: eram luvas de lã. Então fui até minha sacola e de lá apanhei o par de luvas que eu estava abandonando, porque naquele dia estrearia um par novo. Entreguei as luvas para o garoto. Disse-lhe que tinham sido de um grande goleiro. Juro que não tentei ser irônico, tampouco fui fidedigno aos fatos (as luvas tinham sido minhas e eu não sou um grande goleiro). E fiquei imaginando o que estaria passando naquele momento por trás do seu pensamento – a água viva em que vivemos diluídos, soltos, sonhando. O menino era pura alegria, saiu saltitando. Também eu fiquei contente e me empenhei em mostrar que eu poderia jogar bem (“...de um grande goleiro”). Um pouco ainda ficou conosco, jogando no outro time; depois, quando nosso time se completou, ele se parou deitado ao lado da goleira oposta. Arranchado, parecia dormir, tranqüilo, alheio à movimentação em quadra: chuteiras e chutes violentos. Sonharia? Calculei que estivesse sonhando, ali deitado, as luvas postas nas mãos (ele não as tirou), imaginando-se em grandes defesas, ser ele também um Dida, um Gomes, um grande goleiro.

Foi “acordado” quando um chute forte e rasante o atingiu frontalmente. Voou boné e não sei mais o quê. Levou um susto, creio, e meio que se levantou. Teria sido uma defesa? Deve ter se perguntado. Deitou de novo, ficou até o fim do jogo.

Na saída perguntei o seu nome: Mateus. Tinha o mesmo nome do meu filho, o garoto alto que tenho lá em casa, a quem tento persuadir a ser goleiro, mas que já me disse que não vai atacar no gol.

Porto Alegre, 8 de outubro de 2006.

3 ComentÁrios:

Blogger Vinícius Mariano said...

só pra dizer que gostei :-)=

sexta-feira, 20 outubro, 2006  
Blogger Rogério B. Alves said...

Grande trabalho. Parabéns.

quarta-feira, 01 novembro, 2006  
Blogger Edgar Aristimunho said...

Bacana te ver por aqui Rogério...

Duro é o tabalho da palavra, o lapidar, a exatidão, chegando quem sabe à perfeita concisão. Matéria do sonho, tudo menos ilusão...Longe estou da plena forma - bem sei.

Sei, porém, que os amigos ajudam - luxuosas visitas, como a tua, como a de Bernardo, o codinome do amigo aí acima.

A dica foi assimilada (a do e-mail)

Obrigado pela parceria, e posso disse, pelo auxílio luxuoso.

Abç,

segunda-feira, 06 novembro, 2006  

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