sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Esquecimento


A combinação, ele fez consigo mesmo diante do espelho, no primeiro dia de férias. Estava fazendo a barba há quase vinte minutos quando chegou à formulação definitiva da teoria. Esconderia um item de sua lista de viagem atrás da grande árvore de Natal; deixaria ali, no silêncio da sala fechada, o objeto do seu desejo. Seria este o seu único esquecimento no início da folga prolongada de verão, quando a família arruma tudo e sai de casa correndo, como se estivesse fugindo de uma catástrofe. Levam tudo para a praia, mas alguém sempre esquece de algo.

Dizia tudo isso ao espelho. Seu hábito nos últimos anos: conversar sozinho, parado, de pé no banheiro, o único lugar onde ninguém podia lhe incomodar. Sobre a combinação deste dia – era imprescindível – a esposa de nada saberia. Era uma temeridade dividir algo assim com ela – dizia para si mesmo, em voz baixa - a escolha do que deixar. Nem quer lembrar como fora no veraneio passado: esqueceram dois itens (dois!), e por acaso um deles era o creme anti-rugas da mulher que lhe custara uma pequena fortuna. A esposa não perdoou o descuido, e ficou o resto das férias sem conversar com ele. Um tormento aquelas dias. Aumentado pelo mau tempo, que dominou a cena no balneário capixaba – choveu o mês inteiro – as chuvas de verão mergulharam a praia na baixa temporada. O uso do creme, isso lhe foi dito várias vezes, não dependia de tempo bom.

Esquecera também o guarda-chuva, lembra ao reflexo que tem diante de si: um homem com a barba perfeita. A mesma peça que agora a pouco escondeu nas sombras do pinheiro, num lance rápido, enquanto todos estavam distraídos arrumando suas coisas. Nunca poderia imaginar o quanto faria falta o creme da mulher, e muito menos o guarda-chuva.

Sua teoria era simples. Ao final, de volta ao banheiro, disse para si: esquecendo-se uma coisa de propósito, é bem provável que pelas leis universais das probabilidades absurdas, nenhum outro item mais importante seja esquecido. Repetir a explicação diante do espelho o deixava mais tranqüilo. O problema é que não encontrava o segundo item. Onde estaria?

No quarto, ao lado, a esposa concluía a arrumação das malas. Cinco ao todo, uma para cada um, ali ordenadas e alinhadas numa precisão germânica, desprovidas de qualquer superficialidade e prontas para serem carregadas. Fazia o trabalho sozinho para que as filhas não dessem palpite ou mexessem em suas coisas. Correndo de um lado para o outro até a hora da saída, ficou alheia ao que acontecia no banheiro. Sua representação era outra. Preocupada em garantir que nada faltasse à família, ela gritou:

- Antônio, vê se não esquece de apanhar o guarda-chuva. Vai que chove este ano de novo.

Desolado, ele pergunta ao espelho:

- Que será que vamos esquecer desta vez, Antônio?

Carregou a caminhonete. À hora marcada, todos a bordo, seguiram viagem.

Duas horas rodando pela estrada, Antônio inclina o espelho retrovisor interno em sua direção: sorri para si mesmo. A pergunta. Numa voz quase inaudível para que ninguém ouça, ele se pergunta como poderá explicar para a esposa, quando chegarem, o fato de ter esquecido seus apetrechos de barbear? E mais: como foi esquecê-los justamente debaixo da árvore de Natal?

Examina a parceira ao lado. A mulher está sorrindo. No colo dela, o pote do creme aberto indica que ela o está usando naquele momento – seu rosto parece um abacate partido ao meio, o nariz um caroço. Ela não desvia os olhos do pequeno espelho que trouxe na bolsa, seu companheiro inseparável, objeto inacessível à curiosidade das meninas, estas que não param de brigar no banco de trás. Falando baixinho, e sem desviar os olhos de seu objeto de desejo, a esposa comenta:

- Esqueci de passar o creme em casa.

4 ComentÁrios:

Blogger rumblefish74 said...

Muito bom! Discípulo do Rubem Fonseca, não é? Lembra muito ele, vc ainda menciona "A Matéria do Sonho" no cabeçalho, uma história fabulosa dele e também o nome do meu blog - que, contudo, não foi inspirado no Fonseca, mas em Shakespeare e no conto "O Falcão Maltês" do Dashiell Hammett.
Não faço literatura, meu texto ainda está a quilômetros do seu, mas ficaria honrado com uma visita e um comentário sincero, pode meter o pau, não compartilho dessa condescendência que rola entre bloggers. Obrigado.

quinta-feira, 11 janeiro, 2007  
Blogger quasechuva said...

MUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUCHO BOM
to ficando orgulhosa de ti! e porra, pensando que eu tenho um quinhão de participação no sucesso da tua escrita ja que sempre critiquei e meti o pau quando precisava, mas tu tah ficando bom hein rapaiz? bem melhor do que eu....daqui a pouco vc podia começar a escrever minha histórias né? eu te conto a idéia e vc escreve hehehehehehe, sim, to sempre procurando escravizar alguém

terça-feira, 23 janeiro, 2007  
Blogger Edgar Aristimunho said...

O texto, escrito para ti,lá está, abaixo, no link "Tudo Guardado", mês de outubro.
"Guria", é esse o título.
Definitivo.

terça-feira, 23 janeiro, 2007  
Anonymous Anônimo said...

ia mandar aquele trecho pra ti, juro.
esqueci, mas vocês se encontraram.
beijo!

terça-feira, 23 janeiro, 2007  

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