quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Instante-momento


O gosto do Tennesse na boca. Alamedas, corredores, galerias. Chego. A porta indicando com precisão o lugar da celebração. Escoro-me na porta – ela é a passagem definitiva, depois que cruzar por ela a pessoa que está ali – o motivo pelo qual aqui me encontro – ela será outra, e nada será como antes. É apenas uma porta, sei. Foram tantas portas, passagens, hotéis, bares e restaurantes, nas dezenas de milhas percorridas, viagens que fizemos juntos, num agrado etílico que explode em meus ouvidos porque ouço alguém (sussurro) explicando o estado anímico dela neste instante. Jordana agora está ali: deitada, definitiva. Sombra silenciosa envolvida em cores e rendas que desconheço. Um quase nada, ela; há poucos meses ainda vivíamos a descoberta de nossa especialidade; hoje, um fio do que fomos – risco indefinido que vejo longe, aqui desta porta, lá no centro da grande sala. Estou parado e tenho diante de mim um ambiente silencioso e de poucas palavras, e nesse momento estou temeroso de dar os poucos passos que me separam do assento final. Basta entrar, caminhar um trecho, depois cumprimentar um a um os familiares (sempre respeitosamente), olhar Jordana ainda uma vez, depois recuar (duro desejo) sumir. Lembranças. Os passos desse relato interno são lentos. Um retardo proposital na memória. Como se lembrar fosse aqui um pecado – extermínio – tantas coisas deixadas para trás, tantos sonhos. Então paro. Falta a determinação de chegar mais próximo para a última homenagem, pois sei que estou sendo vigiado pelo olhar circunspecto e distante dos familiares que ainda não conseguem explicar o que aconteceu com Jordana, tão jovem.

Entro na sala. Caminho mecanicamente, contando os passos dispostos na exposição de uma mesa de bar, olhando o embaralhado dos copos como se procurasse um ponto neutro na parede branca. Continuo caminhando dentro de minha estupidez – a de lembrar agora daquela campanha publicitária que tanto me atraía: da bebida que era um símbolo de poder absoluto para nós. Agora tudo reduzido àquele metro e meio de comprimento e sessenta de largura... Preciso chegar lá. O prumo, a imprecisão, contudo, torna o trajeto impossível. Cambaleio. Levanto a cabeça orgulhoso. A altivez da civilização norte-americana dos rótulos e do tempo de maturação adequado me envolve, pensamento que entorpece e produz essa luz adocicada, de cor indefinida. Suspiro, tomo ar, respiro, associo o caminho aos momentos vividos juntos, a certeza conjunta desse instante. São poucos passos até o encontro final.

Toco a madeira. Sua cor tem a consistência viscosa e líquida de duas horas sentado no bar do outro lado da rua, onde, trocando o copo pelo movimento dos corpos, eu afundei. Os dias vividos. Um dia ela me disse numa mesa de bar que logo-logo estaria envolta no definitivo. Horas atrás, eu abraçava essas lembranças, tentando recordar em que momento Jordana tornara-se a imagem perfeita de tudo. Agora uma tampa de vidro nos separa. Então espero, e a minha mão é o único elemento que garante equilíbrio no instante em que dou o último passo. Paro.

Espero o instante-momento. O passo final. A descida de cabeça que revolva dentro de mim anos e anos de excessos, o gosto definitivo do Tennesse a cruzar nossas bocas, a minha boca, hoje, ainda ontem, agora pouco, sempre.

2 ComentÁrios:

Blogger quasechuva said...

fico lendo as tuas coisas e vejo a data do ultimo post lá em cima e penso: cretino, vc não está mais no direito de ficar tantos dias sem se exercitar! vamos vamos, disciplina rígida pra vc que está tão no caminho! vamos vamos, já escrevendo, 1, 2, 3, hehehehehe
to brincando mas é sério, agora vc já não pode mais voltar atrás

terça-feira, 23 janeiro, 2007  
Blogger Edgar Aristimunho said...

Hoje eu vou escutar The Cure para lembrar das tuas palavras, o toque de dizer isto: vai, escreve seu-seu, larga mão de ser preguiçoso, Ed.
Guria... quanto mais valia.

terça-feira, 23 janeiro, 2007  

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