O Quinto Medicamento
Sabia mesmo só quando acendiam a luz, pois lá vinha ela, passo certeiro, olhar decidido, ela entrava. Chegava carregada com aqueles equipamentos pontudos que traziam dor e dentro da dor líquidos que ocupariam seu corpo nas próximas horas, pelos próximos dias. Ela. A moça que vestia branco, e que trazia consigo sorrisos rápidos de conformação (eles eram fatais para a determinação do seu estado de ânimo). Nessas horas, sempre perguntava para ela se o seu estado, ali, deitado e imóvel, carregado de pensamentos e alucinações, era realmente terminal? Não sabia, e ele nunca soube. Teve muitas perguntas que ele não obteve resposta naquele lugar de lajotas brancas; porque enquanto você está ali, no espaço reservado aos que não podem sair do hospital, as perguntas perdem o sentido, são como nuvens brancas que se dissipam no compressão sólida de paredes duras, lisas, fechadas e estreitas, fria composição assustadora refletida em medidas vindas de aparelhos tantos quantos são os necessários para manter alguém vivo.
Vivo ele está, agora, muitos dias depois, isso ele sabe. Antes, não; antes era uma passagem, um sonho. Delírio, ilusão, pontas de alguma conspiração que ele via nos gestos, nos olhares rápidos e furtivos, atos que ele jamais conseguiria compreender, sedado ali como estava. Numa ordem forçada, rígida. De duas em duas horas alguém aparecia para medicá-lo, e o que mais ele estranhava era a simpatia das moças com agulha na mão. Elas diziam: “Só mais uma, já vai terminar”. Não terminava. “É o último remédio”, não era. Setenta e duas horas no inferno não terminam assim, da noite para o dia, porque naquele lugar o tempo parece criar vida própria: uma hora vale duas, duas valem cinco, cinco uma eternidade. Quebrada, de tanto em tanto, pelo sorriso dos reparadores – os indivíduos que lhe tiravam os sinais vitais. Mas, o que é mais vital do que uma pergunta não respondida? Nos seus sonhos, eles chegavam, eram rápidos e espartanos, jamais riam. Tinham a seriedade dos limpadores e a forma de um medicamento imposto a todo custo, pouco importa a dor do paciente. A dor. Uma forma líquida, quente, viva que invade e queima por dentro, pelas veias, atingindo a circulação interna, o todo. Eram cinco medicamentos para garantir a tranqüilidade forçada.
A cada novo ingresso farmacêutico na sala de recuperação, uma pergunta ficava. A mesma. Como alguém que sonha seguidas vezes a mesma seqüência, aquele homem, instalado como estava no box dos seus cuidados essenciais, apenas perguntava. Mas o sonho se repetia, sim, repetia, como uma frase pobre desprovida de imaginação, carregada de letras repetidas, rimas pobres e ritmo cacofônico. Era o mesmo sonho sempre: e nele, a pergunta se repetia: por que estou tomando este quinto medicamento? Pra que tanto remédio? Digam. Não diziam. Os homens de branco à sua frente nada falavam, como se fossem desprovidos de rosto, de respostas, de nada. Apenas sorriam, e depois partiam. Seriam eles produtos de sua imaginação? Ficava pensando depois que talvez o nome do remédio fosse este mesmo: imagine.
Agora deitado, livre do controle respiratório, do monitoramento constante dos batimentos cardíacos, somados àquela infinidade de fios elétricos a controlar seus passos (mesmo que estivesse o tempo todo deitado, imóvel), este homem procura lembrar. Tenta, apenas tenta, porque o esforço mental ainda lhe custa muito sofrimento (a cabeça dói). Afinal, para que mesmo servia aquele quinto medicamento que os homens de branco sempre lhe aplicavam? Não consegue, faz esforço enorme, tenta, mas não consegue; é em vão. Impossível lembrar. Então ele pensa:
Talvez o quinto medicamento seja mais um desses avanços da Medicina, a lembrá-lo, agora sim, de que ele esteve lá, foi monitorado, controlado, guiado, e que precisou tomar quatro remédios que lhe garantiram uma sobrevida, depois a própria vida; e depois mais um medicamento só para não esquecer de nada. A dor pela qual passou.
Absolutamente nada.
Vivo ele está, agora, muitos dias depois, isso ele sabe. Antes, não; antes era uma passagem, um sonho. Delírio, ilusão, pontas de alguma conspiração que ele via nos gestos, nos olhares rápidos e furtivos, atos que ele jamais conseguiria compreender, sedado ali como estava. Numa ordem forçada, rígida. De duas em duas horas alguém aparecia para medicá-lo, e o que mais ele estranhava era a simpatia das moças com agulha na mão. Elas diziam: “Só mais uma, já vai terminar”. Não terminava. “É o último remédio”, não era. Setenta e duas horas no inferno não terminam assim, da noite para o dia, porque naquele lugar o tempo parece criar vida própria: uma hora vale duas, duas valem cinco, cinco uma eternidade. Quebrada, de tanto em tanto, pelo sorriso dos reparadores – os indivíduos que lhe tiravam os sinais vitais. Mas, o que é mais vital do que uma pergunta não respondida? Nos seus sonhos, eles chegavam, eram rápidos e espartanos, jamais riam. Tinham a seriedade dos limpadores e a forma de um medicamento imposto a todo custo, pouco importa a dor do paciente. A dor. Uma forma líquida, quente, viva que invade e queima por dentro, pelas veias, atingindo a circulação interna, o todo. Eram cinco medicamentos para garantir a tranqüilidade forçada.
A cada novo ingresso farmacêutico na sala de recuperação, uma pergunta ficava. A mesma. Como alguém que sonha seguidas vezes a mesma seqüência, aquele homem, instalado como estava no box dos seus cuidados essenciais, apenas perguntava. Mas o sonho se repetia, sim, repetia, como uma frase pobre desprovida de imaginação, carregada de letras repetidas, rimas pobres e ritmo cacofônico. Era o mesmo sonho sempre: e nele, a pergunta se repetia: por que estou tomando este quinto medicamento? Pra que tanto remédio? Digam. Não diziam. Os homens de branco à sua frente nada falavam, como se fossem desprovidos de rosto, de respostas, de nada. Apenas sorriam, e depois partiam. Seriam eles produtos de sua imaginação? Ficava pensando depois que talvez o nome do remédio fosse este mesmo: imagine.
Agora deitado, livre do controle respiratório, do monitoramento constante dos batimentos cardíacos, somados àquela infinidade de fios elétricos a controlar seus passos (mesmo que estivesse o tempo todo deitado, imóvel), este homem procura lembrar. Tenta, apenas tenta, porque o esforço mental ainda lhe custa muito sofrimento (a cabeça dói). Afinal, para que mesmo servia aquele quinto medicamento que os homens de branco sempre lhe aplicavam? Não consegue, faz esforço enorme, tenta, mas não consegue; é em vão. Impossível lembrar. Então ele pensa:
Talvez o quinto medicamento seja mais um desses avanços da Medicina, a lembrá-lo, agora sim, de que ele esteve lá, foi monitorado, controlado, guiado, e que precisou tomar quatro remédios que lhe garantiram uma sobrevida, depois a própria vida; e depois mais um medicamento só para não esquecer de nada. A dor pela qual passou.
Absolutamente nada.
2 ComentÁrios:
tu literatura não me esconde,
é um russo latino
A garrafa que tenho na geladeira é russa, polonesa, sueca, faz com que minha literatura seja mais a de um russo latindo.
Como disse Antônio Torres:
Um cão que uiva para a lua
Bj
Postar um comentário
<< Home