Borracheiro - um dia na vida (fragmento de conto)
A chegada. Poeira revolta no chão subindo no mar da imaginação retida daquele que fica o dia inteiro esperando. Ali, nesta paisagem perdida no meio de uma linha reta que liga esta terra seca ao resto do fim do mundo, um posto de beira de estrada. Ao lado, a pequena borracharia caindo aos pedaços lembra uma hospedaria de fantasmas. Diante do único galpão que compõe o estabelecimento, o borracheiro está encostado na porta principal, amparado pelo conjunto desordenado de pensamentos que neste momento lhe fazem companhia. Súbito, é acordado pelo movimento brusco à sua frente, e é só então que percebe a chegada de um cliente, massa escura e empoeirada que toma conta do seu campo de visão, de sua vontade, revelando o pouco ânimo para mais este dia de trabalho. De lembranças. No balé da poeira desordenada, nada além de muita pressa. Alguns exageram – este nem saiu do carro.
O veículo chegou freando, como se estivesse fugindo da paisagem ao seu redor. Por um breve instante, entre a nuvem de poeira e os pensamentos mínimos do borracheiro, um mundo gira e em seguida pára. Lindomar, este homem de aparência simples que a vida e as circunstâncias fizeram borracheiro, observa indiferente todo esse movimento; seu olhar caminha baixo, rasteja pela terra em direção ao centro daquela provocação. Um pneu furado. Espera o abrir de portas, a manifestação do recém chegado. Ninguém sai do carro. A estrutura metálica permanece diante dele, envolta na escuridão compacta de uma discrição suspeita. Os vidros escuros impedem Lindomar de ver qualquer coisa. Mas depois de algum tempo, o vidro se abre, pequena concessão de uns poucos centímetros de diálogo.
- Arruma esse troço aí, meu chapa.
Lindomar não responde. Fica pensando qual o motivo para as pessoas não descerem do carro quando vêm consertar um pneu. A pergunta ele faz, mas não consegue entender, certos acontecimentos lhe escapam. Pensa em superioridade, certo grau de hierarquia, nobreza, preguiça, ou quem sabe o medo que todos têm de sair do carro, ali, no meio do nada, neste lugar composto unicamente de pó e de pneumáticos. Talvez desprezo, indiferença, um pouco de nojo pela situação, afinal o aspecto ordinário do prédio, o chão encardido e as paredes escuras formam um conjunto compacto e assustador que se estende ao redor borracharia. Muitos clientes costumam deixar os vidros fechados, isolados, sem nenhum tipo de contato.
O borracheiro começa seu trabalho, seus passos são lentos e calculados e se perdem no encardido das lembranças. O trabalho é sujo, rende pouco, mal dá para sobreviver (uma boa parte fica para o aluguel do lugar). Lembra do dono do posto onde tem seu negócio instalado. O pagamento está atrasado, Doutor Epaminondas anda com vontade de expulsá-lo dali. Lembra de seu pai, expulso anos atrás dos campos do Seu Juvenal, fazendeiro e único dono das terras da região. Estas são recordações escuras, encardidas que se misturam ao chão duro da borracharia, a aridez em que não nada nasce, nem semente, nem esperança. Ao olhar para cima, sente a humilhação, ela vem do vidro escuro, fechado. Vem de dentro - ninguém abre.
São muitos, lá dentro. Eles riem, música alta, empolgação. Objetos brilhantes em suas mãos, relógios, pulseiras, colares, canos cintilantes, acredita, sejam armas. Permanecem ali dentro durante todo o tempo que durou o conserto. O borracheiro está agachado, envolto em movimentos que vêm do passado e se misturam, agora, aos fatos da vida, ao trabalho duro, o vai-e-vem na vida de um borracheiro.
Lembranças.
Na saída, o sujeito lhe dirige a pergunta:
- Para que lado fica a fazenda do Coronel Juvenal?
A partida. Arrancam o carro num solavanco, mal esperam o fim da resposta, saem gritando. E quando a poeira enfim baixa, quando todos os fantasmas começam a ir embora, a deixarem-no sozinho, Lindomar fala, quieto para si, que este é só mais um dia na vida.
O veículo chegou freando, como se estivesse fugindo da paisagem ao seu redor. Por um breve instante, entre a nuvem de poeira e os pensamentos mínimos do borracheiro, um mundo gira e em seguida pára. Lindomar, este homem de aparência simples que a vida e as circunstâncias fizeram borracheiro, observa indiferente todo esse movimento; seu olhar caminha baixo, rasteja pela terra em direção ao centro daquela provocação. Um pneu furado. Espera o abrir de portas, a manifestação do recém chegado. Ninguém sai do carro. A estrutura metálica permanece diante dele, envolta na escuridão compacta de uma discrição suspeita. Os vidros escuros impedem Lindomar de ver qualquer coisa. Mas depois de algum tempo, o vidro se abre, pequena concessão de uns poucos centímetros de diálogo.
- Arruma esse troço aí, meu chapa.
Lindomar não responde. Fica pensando qual o motivo para as pessoas não descerem do carro quando vêm consertar um pneu. A pergunta ele faz, mas não consegue entender, certos acontecimentos lhe escapam. Pensa em superioridade, certo grau de hierarquia, nobreza, preguiça, ou quem sabe o medo que todos têm de sair do carro, ali, no meio do nada, neste lugar composto unicamente de pó e de pneumáticos. Talvez desprezo, indiferença, um pouco de nojo pela situação, afinal o aspecto ordinário do prédio, o chão encardido e as paredes escuras formam um conjunto compacto e assustador que se estende ao redor borracharia. Muitos clientes costumam deixar os vidros fechados, isolados, sem nenhum tipo de contato.
O borracheiro começa seu trabalho, seus passos são lentos e calculados e se perdem no encardido das lembranças. O trabalho é sujo, rende pouco, mal dá para sobreviver (uma boa parte fica para o aluguel do lugar). Lembra do dono do posto onde tem seu negócio instalado. O pagamento está atrasado, Doutor Epaminondas anda com vontade de expulsá-lo dali. Lembra de seu pai, expulso anos atrás dos campos do Seu Juvenal, fazendeiro e único dono das terras da região. Estas são recordações escuras, encardidas que se misturam ao chão duro da borracharia, a aridez em que não nada nasce, nem semente, nem esperança. Ao olhar para cima, sente a humilhação, ela vem do vidro escuro, fechado. Vem de dentro - ninguém abre.
São muitos, lá dentro. Eles riem, música alta, empolgação. Objetos brilhantes em suas mãos, relógios, pulseiras, colares, canos cintilantes, acredita, sejam armas. Permanecem ali dentro durante todo o tempo que durou o conserto. O borracheiro está agachado, envolto em movimentos que vêm do passado e se misturam, agora, aos fatos da vida, ao trabalho duro, o vai-e-vem na vida de um borracheiro.
Lembranças.
Na saída, o sujeito lhe dirige a pergunta:
- Para que lado fica a fazenda do Coronel Juvenal?
A partida. Arrancam o carro num solavanco, mal esperam o fim da resposta, saem gritando. E quando a poeira enfim baixa, quando todos os fantasmas começam a ir embora, a deixarem-no sozinho, Lindomar fala, quieto para si, que este é só mais um dia na vida.
3 ComentÁrios:
Excelente, Ed. Gostei bastante deste conto.
legal!!sou borracheiro e estava procurando algo p/ por na minha comunidade no orkut e encontrei essa!!muito legal ms consegui por soh uma parte!!vlw...sucesso...
arrasou com esse conto pois é assim mesmo que as pessoas agem eu tenho uma borracharia e ja me perguntei varias vezes isso.... vc arrasou abração Flávia Gaucha
Postar um comentário
<< Home