sexta-feira, 4 de maio de 2007

A Mulher de 28

Para Ângela, uma amiga
Impossível esquecer o dia do seu aniversário, dois anos atrás, quando nos conhecemos e eu ainda engatinhava na pintura abstrata. Eu era um artista que tinha colorido poucos quadros de natureza morta. Estávamos no apartamento dela, deitados na banheira, afundados no silêncio das horas, eu olhando para ela como uma paisagem. Quando Ana Clara se levantou, a água era uma névoa rosada. Enquanto procurava algo no armário, foi me dizendo:

- O bom de fazer 28 é que só faltam dois anos para eu poder usar um creme anti-rugas de verdade.

Deitado, calculando o tempo que eu tinha, enquanto ela de costas, passava o produto pelo corpo, espalhava como se pintasse uma aquarela. Eu tentando entender o que era “de verdade” no contexto daquilo que ela dizia, ela me olhava pelo espelho, sorria. Melhor pensando, o que era aquele contexto? o que era nós? Ela passando o creme, eu pintando a cena, passo a passo. Era muito pouco tempo, sabia. Recém eu tinha concluído o último painel e aquilo deu um trabalho danado. Como poderia compor uma obra perfeita até lá? Esperei ela se virar novamente, fiz uma expressão de bons negócios e perguntei:

- Quer dizer que não existe nada indicado para as mulheres antes dos 30?

Era uma descoberta. Meus olhos brilharam. Ela acariciava seu cabelo com a toalha e falava sobre todos aqueles produtos que usava, enquanto eu, mergulhado nas águas perfumadas do nosso banho de tarde inteira, ia mexendo com o dedo, desenhando nas cores provisórias, imaginando que eu só tinha mais dois anos para terminar aquilo. O tempo corria. Olhei ao redor: estávamos cercados de produtos de beleza por todas as paredes (já eram muitos àquela época), o banheiro era uma loja de cosméticos, e eu ficava maravilhado com tudo aquilo. Quase mergulhei os ouvidos quando ela começou a falar. Se não tivesse perguntado nada...

Dengosa, sua explicação lembrava uma concha de lamentações, a dor de um perfume derramado. Começou a descrever em detalhes o histórico das rugas na sua família, a árvore genealógica que demonstrava todo aquele despencar precocemente adquirido que tanto a preocupava. Ouvir isso não era difícil (eu sempre tive paciência em ouvi-las). Difícil era encontrar a mulher de 28. Depois toda a preparação, os detalhes, presentes. Encher o apartamento de cremes, prateleiras, painéis. Um trabalho de artista. Ficou de pé o resto daquele final de tarde me explicando, enquanto comigo eu pensava: “Deixa como está, não muda, sua boba, ainda não sabe por que eu comecei a gostar de você?”. Pensei mas não disse, pois a simples menção daquilo poderia fazer tudo acabar antes da hora. Afinal, como falar sobre as imperfeições se um artista não deve se explicar?

Dois anos depois e aqui estou, onde tudo começou. Ana Clara está deitada na banheira, intacta na maciez dos seus 30 anos. De pé, observo. Meus olhos brilham ao ver o que o tempo fez com ela, o tratamento, cosméticos, shampoos, anti-rugas... Afundada na banheira, ela dorme um sono de água parada. “Sonha Ana Clara”, tento dizer, ela não me ouve, fica deitada, sonhando. Um dia Ana Clara me contou que sonhava com cremes. Me disse que buscava a plenitude. Eu tentava lhe convencer de que o mundo é feito de imperfeições, mas ela não me ouvia. Por que ela tinha que acreditar no anti-rugas perfeito? Qual a necessidade se a obra de arte já estava pronta?

Agora está tudo feito. Deixarei tudo pronto para quando os convidados chegarem. Uma obra de arte. Diante de mim, dentro da banheira, os produtos esparramados, diluídos, empapados formam um desenho um tanto disforme e viscoso, de consistência duvidosa e que neste momento dão certo relevo corado às imperfeições do seu corpo – uma pintura abstrata -, e esse colorido rosado disfarça o branco da pele. Como se os cremes estivessem dando vida a ela, mesmo toda enrugada como está. Enrugada, sim, mas quem não ficaria depois de estar morta na banheira há cinco horas?

1 ComentÁrios:

Blogger quasechuva said...

hehehe, sabe o que de vaidade me trouxeram os 28?
não me importar de ser gorducha
e fazer máscara de iogurte, aveia e clorofila aos sábados.
alimentar o resto do rosto.

quarta-feira, 09 maio, 2007  

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