Melancia Fora de Época
No supermercado, paro na seção de hortifrutigranjeiros. Um vício ficar olhando aquelas frutas e vegetais que não levarei para casa em hipótese alguma. Ficarei nas bolachas e refrigerantes, salgados e conservas, muita comida congelada, tudo pronto e instantâneo. Para uma pessoa só é mais prático. Passo a chave, saio, dou às costas aos corredores gelados e cinzentos do meu edifício e venho aqui passear. Sempre paro neste setor para dar uma olhada nas cores vivas da natureza – e naqueles seres humanos ali postados tentando fazer de tudo para manterem uma vida saudável. Qual nada! Pura simulação. Uns vêem aqui na seção dos verdes apenas como alguém que presta as últimas homenagens: enquanto acariciam os produtos expostos, querem sair dali o mais rápido possível. Bando de enganadores. Ao meu lado, mais um.
Estaciono meu carrinho de compras ao lado de um sujeito que neste momento olha de maneira demorada e fixa uma lustrosa melancia. Boca aberta, ele está ali feito platéia de circo. Como se tivesse diante de si o show dos elefantes, o embalo do equilibrista, a força atrativa do globo da morte. Patético. Então ele apanha o esférico esverdeado, gira, vira de cima para baixo, olha de novo, procura alguma coisa. Tem nos gestos aquilo que já observei em muitos consumidores: a falsa dúvida dos que tentam se convencer. Estático diante da bola feita de casca e suco, ele retira e recoloca a melancia umas tantas vezes. Seu olhar tem a imbecilidade de alguém que saiu de um dentista há pouco, a boca anestesiada e sem entender a luz ao seu redor. Seus gestos são lentos e desengonçados, como se nunca tivesse visto uma melancia na vida – o brilho de aparecer mais do que os outros. Mas quando percebe a minha presença atrapalha-se, e num movimento um pouco mais brusco deixa cair a enorme fruta no chão. Estatela-se aos seus pés a grande bola verde, agora murcha. Todos ao redor param o tempo suficiente para disfarçar a indiferença dos que testemunham um acidente. Em poucos segundos deixam claro que não estão muito preocupados com o destino da fruta, ou do cliente desastrado; balançam a cabeça, retomam a mecânica de suas compras.
Fico eu ali parado, no meio do silencio de mais uma tragédia cotidiana.
Súbito, reconheço o indivíduo. Um famoso jogador de futebol que recentemente dera ao meu clube um de seus títulos mais importantes. Questionado pela torcida durante meses, o gol na final bastou para absolvê-lo de seu passado recente de improdutividade, e num passe de mágica virou herói. Em poucos meses, contudo, foi do céu ao inferno, julgado e condenado de forma sumária pelo seu péssimo rendimento em campo após a famosa partida final. Acumulou vaias, viveu o exílio do banco de reservas, amargurou o desprezo dos torcedores. Até que foi dispensado pela direção, e pelo que sei, vem treinando separado da equipe à espera de uma proposta de outro time. Virou estorvo de luxo no clube. Ali estava ele. Como em campo, às vezes estático, noutras improdutivo, um vegetal sem serventia. Como os pedaços de melancia espalhados pelo chão, a composição trágica que temos diante de mim, caída, e que agora prende nossa atenção. Sem mexer a cabeça ele me diz:
- Fora de época.
Quase não escuto, me obrigo a perguntar:
- Como disse?
Fala como se estivesse se desculpando:
- Está fora de época. Lá na minha terra estão no ponto agora, suculentas, é só saber cortar, tem um jeito certo. Tem que partir nas linhas nervosas da melancia, depois comer.
Mais um que entende mais de inutilidades do que de futebol. Esses eram os jogadores do meu clube. Preparo a pergunta que está atravessada dentro de mim há quase um ano. É quando reparo um pouco mais em seu rosto: tem o mesmo vermelho picado da melancia, a coloração rude do que já se estragou e não presta mais. Lembra a fruta estrebuchada ali no chão, porção líquida e pastosa, indefinida, inútil, imóvel, uma sujeira das grandes no meio do corredor interditado.
Estaciono meu carrinho de compras ao lado de um sujeito que neste momento olha de maneira demorada e fixa uma lustrosa melancia. Boca aberta, ele está ali feito platéia de circo. Como se tivesse diante de si o show dos elefantes, o embalo do equilibrista, a força atrativa do globo da morte. Patético. Então ele apanha o esférico esverdeado, gira, vira de cima para baixo, olha de novo, procura alguma coisa. Tem nos gestos aquilo que já observei em muitos consumidores: a falsa dúvida dos que tentam se convencer. Estático diante da bola feita de casca e suco, ele retira e recoloca a melancia umas tantas vezes. Seu olhar tem a imbecilidade de alguém que saiu de um dentista há pouco, a boca anestesiada e sem entender a luz ao seu redor. Seus gestos são lentos e desengonçados, como se nunca tivesse visto uma melancia na vida – o brilho de aparecer mais do que os outros. Mas quando percebe a minha presença atrapalha-se, e num movimento um pouco mais brusco deixa cair a enorme fruta no chão. Estatela-se aos seus pés a grande bola verde, agora murcha. Todos ao redor param o tempo suficiente para disfarçar a indiferença dos que testemunham um acidente. Em poucos segundos deixam claro que não estão muito preocupados com o destino da fruta, ou do cliente desastrado; balançam a cabeça, retomam a mecânica de suas compras.
Fico eu ali parado, no meio do silencio de mais uma tragédia cotidiana.
Súbito, reconheço o indivíduo. Um famoso jogador de futebol que recentemente dera ao meu clube um de seus títulos mais importantes. Questionado pela torcida durante meses, o gol na final bastou para absolvê-lo de seu passado recente de improdutividade, e num passe de mágica virou herói. Em poucos meses, contudo, foi do céu ao inferno, julgado e condenado de forma sumária pelo seu péssimo rendimento em campo após a famosa partida final. Acumulou vaias, viveu o exílio do banco de reservas, amargurou o desprezo dos torcedores. Até que foi dispensado pela direção, e pelo que sei, vem treinando separado da equipe à espera de uma proposta de outro time. Virou estorvo de luxo no clube. Ali estava ele. Como em campo, às vezes estático, noutras improdutivo, um vegetal sem serventia. Como os pedaços de melancia espalhados pelo chão, a composição trágica que temos diante de mim, caída, e que agora prende nossa atenção. Sem mexer a cabeça ele me diz:
- Fora de época.
Quase não escuto, me obrigo a perguntar:
- Como disse?
Fala como se estivesse se desculpando:
- Está fora de época. Lá na minha terra estão no ponto agora, suculentas, é só saber cortar, tem um jeito certo. Tem que partir nas linhas nervosas da melancia, depois comer.
Mais um que entende mais de inutilidades do que de futebol. Esses eram os jogadores do meu clube. Preparo a pergunta que está atravessada dentro de mim há quase um ano. É quando reparo um pouco mais em seu rosto: tem o mesmo vermelho picado da melancia, a coloração rude do que já se estragou e não presta mais. Lembra a fruta estrebuchada ali no chão, porção líquida e pastosa, indefinida, inútil, imóvel, uma sujeira das grandes no meio do corredor interditado.
O funcionário do estabelecimento chega rápido, pede licença, está impaciente, vai limpando tudo, varre destroços, seca o caldo vermelho, carrega as sementes esbranquiçadas, anêmicas, algumas ainda ficam espalhadas pelo piso, feito estrela solitária naquele provisório chão colorado.
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