A caderneta
Nesta manhã em que visito os pequenos dramas do casal de vovozinhos a
que chamo meus pais – e repiso toda a sorte de chantagem emocional
e jogo de argumentos para não decidirmos, a três, qual afinal dos
dois têm razão – esse incômodo desconforto dos pais confrontando
o bem-querer ao filho que os escuta e não se faz entender – e eu
nem sei se estava escutando direito quando pedi caneta e papel – e
de uma gaveta a minha mãe retirou uma caderneta de onde caíram terços,
contas e algum panfleto de santa católica, mensagem espírita ou São
Jorge da Umbanda – porque a minha mãe, a sempre mais falante dos
dois, carrega esse sincretismo religioso brasileiro de explicar tudo
– e enquanto eles iniciavam mais algum embate intelectual sobre a
forma correta de cortar a manteiga ou “a quantidade absurda de
leite que o teu pai toma”, eu apanhava o pequeno caderno e iniciava
uma pequena história do filho que chega à casa dos pais – e uma
vez por semana ouve a cachoeira de lamúrias e me dói aqui, me dói
acolá, os cachorros não-sei-o-que viraram a lata “que ele nunca
recolhe no meio do pátio”, a tua tia, sabe, está muito doente, e
aquela tua irmã sabe-o-que-ela-fez-agora?, eu ia construindo um
minúsculo texto sobre a felicidade das quartas-feira, quando viajo
vinte e oito quilômetros para continuar o filho deles.
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