sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A caderneta

 Nesta manhã em que visito os pequenos dramas do casal de vovozinhos a que chamo meus pais – e repiso toda a sorte de chantagem emocional e jogo de argumentos para não decidirmos, a três, qual afinal dos dois têm razão – esse incômodo desconforto dos pais confrontando o bem-querer ao filho que os escuta e não se faz entender – e eu nem sei se estava escutando direito quando pedi caneta e papel – e de uma gaveta a minha mãe retirou uma caderneta de onde caíram terços, contas e algum panfleto de santa católica, mensagem espírita ou São Jorge da Umbanda – porque a minha mãe, a sempre mais falante dos dois, carrega esse sincretismo religioso brasileiro de explicar tudo – e enquanto eles iniciavam mais algum embate intelectual sobre a forma correta de cortar a manteiga ou “a quantidade absurda de leite que o teu pai toma”, eu apanhava o pequeno caderno e iniciava uma pequena história do filho que chega à casa dos pais – e uma vez por semana ouve a cachoeira de lamúrias e me dói aqui, me dói acolá, os cachorros não-sei-o-que viraram a lata “que ele nunca recolhe no meio do pátio”, a tua tia, sabe, está muito doente, e aquela tua irmã sabe-o-que-ela-fez-agora?, eu ia construindo um minúsculo texto sobre a felicidade das quartas-feira, quando viajo vinte e oito quilômetros para continuar o filho deles.

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