Gancho
Nem bem havia subido as escadas que dava acesso à embarcação e
ouviu atrás de si aquela voz rouca na escuridão:
– Boa noite.
Era um boa noite carregado de
um sotaque pastoso, de gente lá do Oeste. O capitão foi rápido, e
virou-se:
– Quem sobe lá?
A resposta era calculada, intervalada, silenciosa, e a chuva era
apenas um estorvo a mais no diálogo:
– Sou o candidato à vaga de marinheiro. O sobrevivente. O único.
Do naufrágio do SS Oregan. O senhor deve ter lido nos jornais.
– Eu não leio jornais; eu comando este barco.
Ficaram se olhando por um tempo – e o tempo apertando – da
maneira que podem se olhar dois estranhos a certa hora perdida da
noite, já madrugada, cais do porto vazio, região afastada, cidade
de Portland. A figura que chegara junto e no encalço do capitão era
ainda mais escura sob uma capa preta, os pingos escorrendo pela
beirada, enquanto ao lado o braço do homem carregava um longo metal
encurvado, semelhante a um pequeno arpão. O comandante da embarcação
retomou:
– Mas ouvi falar do fim do Capitão London. Afundou o próprio
barco como me contaram. É uma história estranha, não acha filho?
Novamente silêncio, o mais novo não respondia, e o único som entre
aqueles dois homens vinha apenas do contínuo cair das águas, chuva
imprópria a atrapalhar aquele dia de negociação. O capitão não
desistia:
– Quer dizer que ele afundou o barco, foi isso que contaram? Fiquei
sabendo que depois foi encontrado com um rasgão no meio das costas,
a milhas do desastre... Como se um arpão tivesse sido atirado contra
ele.
Os dois homens ainda ficaram se olhando um tempo, o recém-chegado
mirando para todos os lados do convés, como se buscasse a presença
de mais alguém, enquanto o capitão permanecia parado, olhar fixo
nos movimentos do outro.
– Nada sei. Fui resgatado entre os últimos escombros do que sobrou
por outro barco pesqueiro que passava, explicou o novato.
– Então quer dizer que não sabia nada sobre a traição sofrida
pelo velho Jack?
Mais uma vez o silêncio ocupando largos espaços na conversa,
acompanhado por novas golfadas de chuva fria, cada vez mais forte,
horizontal, indireta. Ninguém ali conseguia ver nada. E enquanto o
novo marinheiro ia subindo a rampa e afastando a água com seus
passos pesados, o capitão recuava, e recuando ficava cada vez menor
diante do gancho que agora subia e brilhava pelas linhas turvas do
céu-horizonte, o palpitar dos ânimos, o barco a balançar nas águas
inquietas da dúvida, quem seria ele?,
e ele era o único marinheiro sobrevivente do terrível naufrágio do
pesqueiro SS Oregon, cujo capitão, o velho Jack London, foi
encontrado morto com uma fisgada nas costas, segundo contaram,
ninguém mais sabe, ninguém mais viu.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home