quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Gancho

 Nem bem havia subido as escadas que dava acesso à embarcação e ouviu atrás de si aquela voz rouca na escuridão:
– Boa noite.
Era um boa noite carregado de um sotaque pastoso, de gente lá do Oeste. O capitão foi rápido, e virou-se:
           – Quem sobe lá?
A resposta era calculada, intervalada, silenciosa, e a chuva era apenas um estorvo a mais no diálogo:
– Sou o candidato à vaga de marinheiro. O sobrevivente. O único. Do naufrágio do SS Oregan. O senhor deve ter lido nos jornais.
– Eu não leio jornais; eu comando este barco.
Ficaram se olhando por um tempo – e o tempo apertando – da maneira que podem se olhar dois estranhos a certa hora perdida da noite, já madrugada, cais do porto vazio, região afastada, cidade de Portland. A figura que chegara junto e no encalço do capitão era ainda mais escura sob uma capa preta, os pingos escorrendo pela beirada, enquanto ao lado o braço do homem carregava um longo metal encurvado, semelhante a um pequeno arpão. O comandante da embarcação retomou:
– Mas ouvi falar do fim do Capitão London. Afundou o próprio barco como me contaram. É uma história estranha, não acha filho?
Novamente silêncio, o mais novo não respondia, e o único som entre aqueles dois homens vinha apenas do contínuo cair das águas, chuva imprópria a atrapalhar aquele dia de negociação. O capitão não desistia:
– Quer dizer que ele afundou o barco, foi isso que contaram? Fiquei sabendo que depois foi encontrado com um rasgão no meio das costas, a milhas do desastre... Como se um arpão tivesse sido atirado contra ele.
Os dois homens ainda ficaram se olhando um tempo, o recém-chegado mirando para todos os lados do convés, como se buscasse a presença de mais alguém, enquanto o capitão permanecia parado, olhar fixo nos movimentos do outro.
– Nada sei. Fui resgatado entre os últimos escombros do que sobrou por outro barco pesqueiro que passava, explicou o novato.
– Então quer dizer que não sabia nada sobre a traição sofrida pelo velho Jack?
Mais uma vez o silêncio ocupando largos espaços na conversa, acompanhado por novas golfadas de chuva fria, cada vez mais forte, horizontal, indireta. Ninguém ali conseguia ver nada. E enquanto o novo marinheiro ia subindo a rampa e afastando a água com seus passos pesados, o capitão recuava, e recuando ficava cada vez menor diante do gancho que agora subia e brilhava pelas linhas turvas do céu-horizonte, o palpitar dos ânimos, o barco a balançar nas águas inquietas da dúvida, quem seria ele?, e ele era o único marinheiro sobrevivente do terrível naufrágio do pesqueiro SS Oregon, cujo capitão, o velho Jack London, foi encontrado morto com uma fisgada nas costas, segundo contaram, ninguém mais sabe, ninguém mais viu.


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