O último otário
Quando o chefe chegou empolando sua voz numa sintaxe contábil
confusa foi aí que ele me contou:
– Desde estagiário já sabia que o melhor é sempre carregar um
ofício nas mãos; assim ninguém me dá trabalho.
Foi então eu não tive mais dúvida – e a ideia.
Olhei o ofício em sua mesa como quem olha um objeto qualquer,
visitando morto no enterro desavisado.
Tratei logo de desviar o assunto para o crescimento em forma de bolha
da empresa; as contas pendentes, as despesas correntes; também
lembrei de comentar sobre a nova remessa de equipamentos, as
promessas de lucros e dividendos, e foi mais ou menos por aí que
aproveitei sua empolgação (ele sempre ergue os olhos feito
profeta), olhei para os lados (não havia testemunhas), deslizei a
mão sinistra e surrupiei aquele ofício importante, sempre sorrindo
num exercício futuro.
Tinha gosto ruim aquele ofício, mas o que fazer se você tem que
eliminar provas antes de sair? Percebendo o meu transtorno, aquele
mal-estar repentino (indigestão), ele ainda foi solícito e me
ofereceu um copo de água.
Eu tinha sede.
Era como se eu tivesse me engasgado diante dele.
Muita sede.
Havia graça ele me servindo água?
Bebi, depois sorri.
Estava eu diante do último otário... e não sabia.
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