domingo, 31 de julho de 2016

O colchão

Dona Maria de Lourdes ainda não sabe, mas foi no mesmo instante-segundo-momento em que escutou o baque, o estalo surdo de madeira partida, que sua estratégia se foi. Desandou. E com ela partem abraçados juntos e de mãos dadas todos os seus sonhos. Os de garantir uma vida segura para sua única amada filha.
Quanto ao som abafado deste desdobramento trágico, Maria de Lourdes sabe de onde vem. Dos fundos da casa, do quarto da filha Giovana, a menina crescida que há poucos dias completava quinze anos. Comemorados com bolo caseiro e aquele inusitado presente – sobre a cama jaz agora... um colchão. Dobrado, o estranho presente ganho da mãe pela menina Giovana é a prova seca daquela vilania materna, do desastre de uma tosca estratégia mal pensada. O colchão. Esta é uma história de erros e medidas.
No quarto, sobre o dorso afundado na cama, repousa o inusitado presente da mãe, este objeto de casal que surgirá depois aos olhos espantados dos vizinhos que acorreram à gritaria, para saberem da cena, esta mesma encenação que a mãe agora assiste agora como a um fado, fato sobre o qual nada mais pode fazer, pobre destino... Quem sabe um aviso de que não seria mesmo desta vez que deixariam aquela vida de miséria-periferia-violência. Contudo hoje, para os intentos rudes e práticos da dona-de-casa Maria de Lourdes, hoje ela descobre que os seus sonhos não se realizarão. Definitivamente, hoje não.
E tudo porque ao entrar no quarto da tragédia consumada ela encontra quem ela sabe que iria encontrar: os dois. Mas não é o fato de haver no quarto, sobre a cama partida, dois seres, duas pessoas adolescentes, sua filha e o rapaz do colégio, não é isso o que lhe causa mais espanto. Isso ela já sabia pelo pacto sinistro, pretérito e acordado com a filha. É antes o fato de não ter se lembrado da cama, da estrutura quem sabe frágil daquela antiga cama de casal, antes sua, por anos e onde seu marido tanto a maltratou antes de partir de vez embora; agora a cama foi destacada para o quarto da filha, naquela missão; e o que mais lhe mói por dentro, agora, é ter lembrado apenas do colchão. Quando então descobre afinal que foram as condições da cama que impedirem o ato-fato-consumado, ali, a filha trazendo o suposto namorado, segundo os cálculos da mãe, o futuro esposo, o bom-partido que traria prosperidade à família. Não – tudo acaba no chão, ou melhor, na cama que se partiu enquanto dobrado – mas intacto, novo – aquele colchão.

Também como saber que o sujeito ali deitado era ele o verdadeiro amor da filha, e não o príncipe encantado tão desejado e escolhido a dedo pela ambiciosa mãe dentre os pares da filha no colégio dos ricos. Esta mãe que agora chora à porta do quarto ao testemunhar o instante dantesco daqueles dois juntos, agarrados: sua doce e delicada filha acompanhada daquele sapo gordo brutamontes – quem-quem-quem? – ora, aquele inútil do Zé Maria, o pesadinho do Beco de Trás.

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