O colchão
Dona Maria de Lourdes ainda não sabe, mas foi no mesmo
instante-segundo-momento em que escutou o baque, o estalo surdo de madeira
partida, que sua estratégia se foi. Desandou. E com ela partem abraçados juntos
e de mãos dadas todos os seus sonhos. Os de garantir uma vida segura para sua
única amada filha.
Quanto ao som abafado deste desdobramento trágico, Maria de Lourdes sabe
de onde vem. Dos fundos da casa, do quarto da filha Giovana, a menina crescida que
há poucos dias completava quinze anos. Comemorados com bolo caseiro e aquele
inusitado presente – sobre a cama jaz agora... um colchão. Dobrado, o estranho
presente ganho da mãe pela menina Giovana é a prova seca daquela vilania
materna, do desastre de uma tosca estratégia mal pensada. O colchão. Esta é uma
história de erros e medidas.
No quarto, sobre o dorso afundado na cama, repousa o inusitado presente
da mãe, este objeto de casal que surgirá depois aos olhos espantados dos vizinhos
que acorreram à gritaria, para saberem da cena, esta mesma encenação que a mãe
agora assiste agora como a um fado, fato sobre o qual nada mais pode fazer, pobre
destino... Quem sabe um aviso de que não seria mesmo desta vez que deixariam
aquela vida de miséria-periferia-violência. Contudo hoje, para os intentos rudes
e práticos da dona-de-casa Maria de Lourdes, hoje ela descobre que os seus
sonhos não se realizarão. Definitivamente, hoje não.
E tudo porque ao entrar no quarto da tragédia consumada ela encontra quem
ela sabe que iria encontrar: os dois. Mas não é o fato de haver no quarto,
sobre a cama partida, dois seres, duas pessoas adolescentes, sua filha e o
rapaz do colégio, não é isso o que lhe causa mais espanto. Isso ela já sabia pelo
pacto sinistro, pretérito e acordado com a filha. É antes o fato de não ter se lembrado
da cama, da estrutura quem sabe frágil daquela antiga cama de casal, antes sua,
por anos e onde seu marido tanto a maltratou antes de partir de vez embora;
agora a cama foi destacada para o quarto da filha, naquela missão; e o que mais
lhe mói por dentro, agora, é ter lembrado apenas do colchão. Quando então
descobre afinal que foram as condições da cama que impedirem o ato-fato-consumado,
ali, a filha trazendo o suposto namorado, segundo os cálculos da mãe, o futuro
esposo, o bom-partido que traria prosperidade à família. Não – tudo acaba no chão,
ou melhor, na cama que se partiu enquanto dobrado – mas intacto, novo – aquele
colchão.
Também como saber que o sujeito ali deitado era ele o verdadeiro amor da
filha, e não o príncipe encantado tão desejado e escolhido a dedo pela
ambiciosa mãe dentre os pares da filha no colégio dos ricos. Esta mãe que agora
chora à porta do quarto ao testemunhar o instante dantesco daqueles dois juntos,
agarrados: sua doce e delicada filha acompanhada daquele sapo gordo brutamontes
– quem-quem-quem? – ora, aquele inútil do Zé Maria, o pesadinho do Beco de Trás.
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