Os comprimidos não mentem
Para C.D., pela inspiração
A cartela na minha frente não
mente. Ela me lembra o pesadelo periférico cujo desdobramento, vejo agora diante de mim: a dor de cabeça. Por um momento resolvida
no instante exato em que a colega vem ao meu socorro, apanha da bolsa, dentro dela retira a cartela e me
apresenta : paracetamol.
Difícil não reparar no desalinhamento do pequeno envelope. Oito
pontos. Dois abertos, os comprimidos já retirados. Um buraco no
topo, à esquerda; o outro abaixo, no canto, à direita. Impossível
não reparar no desalinho, a falta de sistemática de quem retirou
os comprimidos e não seguiu padrão nenhum. Desordem. Esculhambação. Brasil. A nossa vida não tem que ser assim. Meu olhar é um jato,
lanço a pergunta:
– Apanho aqui, ou ali?, e dizendo isto fui apontando os locais
disponíveis ao lado das crateras aleatoriamente deixadas na cartela,
isto nas outras duas vezes que alguém utilizou-se dos comprimidos...
A colega também me olha, parece pensar: Galáxia estranha esse sujeito. Porque é nítida a impressão que tenho dela não acredita no que está escutando. Parece perguntar: como alguém pode ficar pensando na ordem correta de retirada dos comprimidos de uma cartela estando, como está, altamente febril? Diga, como? E no entanto ainda permaneço diante dela um tempo, o olhar parado, de pé, sem sair do lugar, sempre com a cartela na mão, esperando sua decisão final.
– Qualquer uma.
É quando começo a refletir sobre a situação – não
exatamente sobre o meu estado de saúde, não sobre o calor dessa
febre alta, não sobre essa proximidade do caos –, quase esqueço o mal-estar, não; perco-me numa matemática absurda, o dedo a
percorrer o envelope do medicamento, e então conto até dez,
percorro a saliência de todos os pontos brancos redondos restantes
da cartela e na lentidão dos enfermos eu aponto um dos
comprimidos do canto restantes, estabeleço um padrão, quebro o plástico,
deixo cair a pedrinha na palma da mão, e passo a enxergar um padrão
claro e definido: cada uma das drágeas retiradas saiu de um dos
quatro cantos – e tenho certeza que o próximo a utilizá-la saberá
disso. Então fico mais tranquilo, sei, esse febre não vai baixar (há
muita dor a me perseguir), mesmo assim ergo o copo d´água, engulo o remédio e
fico por um instante acreditando que o mundo agora anda melhor porque os
comprimidos, os comprimidos não mentem.
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