sexta-feira, 31 de março de 2017

A intermitência desta solidão continental


HOMENAGEM A JOÃO GILBERTO NOLL


Todo escritor tem os seus ciclos, suas intermitências. Alcançam momentos de lucidez, principalmente na mão de cada vez mais raros escritores, e estão aí para nos comprovar isso as perdas sucessivas de Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu e agora João  Gilberto Noll. Todos escreveram sobre a instabilidade do ser humano, seus fluxos e contrafluxos, numa escrita de indução, na qual os reflexos do outro ingressam em nós instaurando a perplexidade, a fluidez, o infortúnio - e sobre isso nada podemos fazer. Sempre incisivos nessa viagem à fúria do corpo, também eles tiveram os seus ciclos secos: um dia descobriram-se num vazio de ideias, de sentimentos, e daí o escrito não sai, emperra. É o ciclo seco. Enfrentá-lo, digamos, exige coragem de todo aquele ser escritor.
Lembrei disso quando tive o suspiro de ler a última crônica de Caio Fernando Abreu, publicada em Zero Hora pouco antes de sua morte (1). Nela, o escritor gaúcho aborda nossa capacidade de viver – e sobreviver – ao ciclo das mortes. O vazio, no texto de Caio, aparece nessa metáfora do ciclo das águas, o drama nordestino da falta de chuva, da escassez de algo. Um problema social que simplesmente se vive – o homem do sertão não tem muito que fazer – então vive, espera o ciclo passar. “Sobreviver demora”(2), nas palavras de outro escritor das instabilidades, Paulo Scott.
Em seu texto, Caio nos traz a dor final de pressentir-se como uma fruta que murcha, feito ameixa seca, vazia, sem vida. A vida que lhe vai, escapa, foge – meras palavras a identificar no texto a falta de tudo – vazio, morte, ausência de prazer ou inspiração. O ciclo de Caio é seco e não admite adjetivos. Ele vai. Ele volta. Quando chega, não bate, entra, instala-se de maneira antinatural em nossas vidas. Fica. E se faz natural.
Aquela dor de Caio, escritor terminal, é a dor do leitor, este que pressente no texto a ausência de tudo – vazio – o fim de um ciclo.
A dor de hoje sabermos sobre a perda de mais um grande escritor brasileiro - e saber que jamais serão produzidas palavras como as encontramos nas veredas penetrantes do infinito particular de João Gilberto Noll - por também ele, vivendo os seus últimos dias praticamente sozinho dentro de seu apartamento, numa espécie de solidão continental que ele mesmo escreveu, encerra agora um ciclo.
A intermitência de um ciclo que se seca. E vai. E foi.
Muitos ainda descobrirão João Gilberto Noll. Tardiamente, digamos, porque lá adiante ele já estará morto; suas perguntas, contudo, restarão.

Fins de março de 2017
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(1)  Introdução ao estudo do ciclo seco” in: Zero Hora, Cultura, 10.02.1996, p.6.
(2)   in: A timidez do monstro. S.Paulo: Objetiva, 2006.

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