O prego
Sentado na grande mesa das
decisões, um juiz tem diante de si partes e seus auxiliares; tudo
pronto para começar a audiência, o mundo em suas mãos. Um
carpinteiro diante da obra. Antes de iniciar, vem a ideia, e ele
então começa a procurar algo, um papel, ofício, algum tipo de
encaminhamento dos recursos humanos, mas seu pensamento está longe,
preso a um ponto determinado da sala, e tudo aquilo é um ensaio.
Todos aguardam – é só ele quem pode começar. Então ainda outra
vez esse juiz olha na direção da parede, há um ponto fixo, preto,
suposto seja uma simples sujeira, mas não há dúvida, é apenas um
estúpido artefato pregado no alto, no ponto central de tudo. O
prego. Aquele objeto devora sua iniciativa, e o juiz, prostrado, se
perde olhando para tão minúscula referência. Os presentes tentam
imaginar qual será sua próxima ação, mas ato contínuo, eles
percebem que o tempo passou, o horário chegou e o juiz nada. Os
presentes olham em sua direção tentando imaginar no que diabos ele
está pensando naquele momento. O advogado, serviçal, toma a frente
(eles se apanham a dianteira) e pergunta se ele está precisando de
algo. Nenhuma resposta: o julgador continua olhando para o ponto
fixo, feito dispositivo, sentença; ele disposto agora a tomar para
si os autos e a responsabilidade pelo bom andamento da justiça, sim,
não há dúvida, mas ele precisa decidir de uma vez por todas se
manda o encarregado dos serviços gerais retirar o incômodo objeto
cuja finalidade tornou-se nula, principalmente após ele mandar
remover, dias atrás, o horrível quadro de 40 x 80 que a ex-mulher
lhe dera anos atrás e do qual ele de fato e de direito nunca gostou;
precisa decidir se chama alguém para retirar o inútil suporte da
parede ou se devolve o quadro para a mãe de seus filhos; se
aproveita, enfim, esse intervalo entre as duas audiências, esquece o
telefonema raivoso dela no início da tarde e resolver chamar de uma
vez a nova secretária, recém-indicada pelo gabinete do
desembargador. Bem mais nova que a última, isto ele sabe, o
desembargador assegurou. A última: essa não. Dona Jurema não serve
mais; ela é amiga de Márcia, e a ex-esposa tinha aquele costume de
ficar conversando muito tempo com a secretária – sobretudo sobre a
vida social e as crises do casal. Inadequada para o caso. Ao lembrar
disso, o magistrado se remexe mais uma vez na poltrona, sente que
precisa retomar o controle de sua vida. À sua frente, contudo, estão
eles, entes amarelados pela luz da sala de audiência. Encara a
banca: o advogado contratado parece implorar o início da audiência;
o representante do Ministério Público ali empostado, mudo, sorri em
sua eterna postura de serviçal do Judiciário (tem dado provas disso
nas últimas mensagens); toma um susto apenas quando olha na direção
do réu. Nada simpático aquele sujeito, parecer ter um ódio
registrado no fundo da alma, um rancor antigo, cheio de fome. A
tensão percorre cadeiras, o tempo extrapola agendas, e há uma
dinâmica própria nos olhares ao redor da mesa, todos se voltam para
o grande relógio preso ao lado do crucifixo da sala. Há certo
incômodo nessa espera – e o que dizem as mãos que batem seus
dedos sobre o tampo da mesa de audiências. De todo modo, estão
todos cientes do poder decisivo do magistrado nessas horas e
aguardam. Observam, mas o juiz não se mexe: sentado, imóvel em sua
cadeira, ele pensa na urgência daquele serviço, o prego fixado no
alto da parede, alguma coisa pendurada em sua vida. Tantos
requerimentos a decidir nesta tarde de pedidos, apartes e
sustentações orais, e ele ali, pendurado no esquecimento daquele
prego que não, não serve mais. Então ele dá um murro na mesa e
chama as partes: ainda meio perplexos com a violência da hora, eles
se mexem, todos se aprumam, a audiência começa.
Julho
de 2019.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home