quarta-feira, 31 de julho de 2019

O prego


Sentado na grande mesa das decisões, um juiz tem diante de si partes e seus auxiliares; tudo pronto para começar a audiência, o mundo em suas mãos. Um carpinteiro diante da obra. Antes de iniciar, vem a ideia, e ele então começa a procurar algo, um papel, ofício, algum tipo de encaminhamento dos recursos humanos, mas seu pensamento está longe, preso a um ponto determinado da sala, e tudo aquilo é um ensaio. Todos aguardam – é só ele quem pode começar. Então ainda outra vez esse juiz olha na direção da parede, há um ponto fixo, preto, suposto seja uma simples sujeira, mas não há dúvida, é apenas um estúpido artefato pregado no alto, no ponto central de tudo. O prego. Aquele objeto devora sua iniciativa, e o juiz, prostrado, se perde olhando para tão minúscula referência. Os presentes tentam imaginar qual será sua próxima ação, mas ato contínuo, eles percebem que o tempo passou, o horário chegou e o juiz nada. Os presentes olham em sua direção tentando imaginar no que diabos ele está pensando naquele momento. O advogado, serviçal, toma a frente (eles se apanham a dianteira) e pergunta se ele está precisando de algo. Nenhuma resposta: o julgador continua olhando para o ponto fixo, feito dispositivo, sentença; ele disposto agora a tomar para si os autos e a responsabilidade pelo bom andamento da justiça, sim, não há dúvida, mas ele precisa decidir de uma vez por todas se manda o encarregado dos serviços gerais retirar o incômodo objeto cuja finalidade tornou-se nula, principalmente após ele mandar remover, dias atrás, o horrível quadro de 40 x 80 que a ex-mulher lhe dera anos atrás e do qual ele de fato e de direito nunca gostou; precisa decidir se chama alguém para retirar o inútil suporte da parede ou se devolve o quadro para a mãe de seus filhos; se aproveita, enfim, esse intervalo entre as duas audiências, esquece o telefonema raivoso dela no início da tarde e resolver chamar de uma vez a nova secretária, recém-indicada pelo gabinete do desembargador. Bem mais nova que a última, isto ele sabe, o desembargador assegurou. A última: essa não. Dona Jurema não serve mais; ela é amiga de Márcia, e a ex-esposa tinha aquele costume de ficar conversando muito tempo com a secretária – sobretudo sobre a vida social e as crises do casal. Inadequada para o caso. Ao lembrar disso, o magistrado se remexe mais uma vez na poltrona, sente que precisa retomar o controle de sua vida. À sua frente, contudo, estão eles, entes amarelados pela luz da sala de audiência. Encara a banca: o advogado contratado parece implorar o início da audiência; o representante do Ministério Público ali empostado, mudo, sorri em sua eterna postura de serviçal do Judiciário (tem dado provas disso nas últimas mensagens); toma um susto apenas quando olha na direção do réu. Nada simpático aquele sujeito, parecer ter um ódio registrado no fundo da alma, um rancor antigo, cheio de fome. A tensão percorre cadeiras, o tempo extrapola agendas, e há uma dinâmica própria nos olhares ao redor da mesa, todos se voltam para o grande relógio preso ao lado do crucifixo da sala. Há certo incômodo nessa espera – e o que dizem as mãos que batem seus dedos sobre o tampo da mesa de audiências. De todo modo, estão todos cientes do poder decisivo do magistrado nessas horas e aguardam. Observam, mas o juiz não se mexe: sentado, imóvel em sua cadeira, ele pensa na urgência daquele serviço, o prego fixado no alto da parede, alguma coisa pendurada em sua vida. Tantos requerimentos a decidir nesta tarde de pedidos, apartes e sustentações orais, e ele ali, pendurado no esquecimento daquele prego que não, não serve mais. Então ele dá um murro na mesa e chama as partes: ainda meio perplexos com a violência da hora, eles se mexem, todos se aprumam, a audiência começa.
Julho de 2019.

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