quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Treino fônico


            A invenção das palavras. Estas que estou a pensar enquanto caminho em direção à sede de minha academia. Não, não sou a proprietária, apenas mais uma aluna em busca da forma física perfeita. Meu ramo de atividade é outro e me obriga; ninguém na sala de musculação seria capaz de entender o que faço. E o que exatamente eu faço da vida? Cedo para dizer. Do meu sonho, sim, posso falar: cantora lírica. Por isso sigo nos exercícios vocais, fico repetindo letras, palavras, sons; associando ideias, formando palavras, pronunciando em voz alta (mesmo que esteja na rua); o som, esta conversa comigo mesma, sim, agradável dizer uma palavra qualquer. Por exemplo:
            Treinofônico.
            Tal ideia, pensamento, me veio outro dia em plena aula, no grande salão, em meio a supinos e resguardo de forças, não é bom exagerar antes do fim do dia: o cansaço pode me custar caro. A ideia tive durante os exercícios com o meu personal trainer. Estávamos naquela socialização típica das academias, onde a trivialidade dos assuntos deixa todos cheios de palavras, comentários, anotações inúteis. Seis meses, o pacote quase fechando, hora de renovar, e ele, o professor, ainda tentando saber o que eu faço na vida. Por que o interesse? Curiosidade ou mera rotina formal daquela profissão em que muitas vezes interessa mais as páginas sociais da vida do que a correção do exercício? Esses sujeitos precisam ter assunto sempre e a todo custo?
            Odeio “ter assunto”. No meu trabalho prefiro fazer as coisas do meu jeito: em absoluto silêncio. Afinal, qual a necessidade de palavras na minha atividade, se os homens nem escutam mesmo? O que eles querem são gemidos – e isso não é nenhum tipo de qualidade lírica. O meu sonho morre no suor daquele espaço entre quatro paredes, hotéis escolhidos ora pelo preço, ora pela localização, e o que interessa para o cliente mesmo são os movimentos repetitivos – nem sempre precisam ser criativos – e ali os corpos não se falam. Ninguém me paga para falar. No Liberdade, não há liberdade para esses devaneios narrativos. O animal dos motéis não me permite.
            Na academia é diferente: lá posso falar sobre o último corte de meu cabelo, sobre as promoções da liquidação no shopping e até sobre os pequenos dramas renais de minha cachorrinha, Lory Lamby.
            Lá o treino é sempre fônico, e é preciso ter criatividade para não se dizer quem é.

Janeiro de 2019.

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