O homem do banco (sentado no muro)
Na calmaria desta meia-tarde de
quase-verão, mexo os talheres da sobremesa e sorvo os últimos instantes do meu
café. Sei. São quase três horas da tarde e daqui a pouco alguém me cutuca para
lembrar que está na hora de o restaurante fechar. Sempre assim. Desde minha
precoce aposentadoria, depois que os filhos foram embora e também ela não achou
nenhum motivo para dividir a casa e tudo-lá-que-seja comigo. Restou as memórias
do banco, chefia, fluxo cambial, contratos fechados no temor das últimas horas,
o grande stress de fim de ano. Agora aqui: no último almoço do ano, faço o
balanço do diferido.
Alguém realmente me chama:
– Três horas, Doutor Vicente. Vamos
fechar.
Fico me enrolando com as últimas
réstias de café, a pequena torta antes consumida, o almoço já ficara horas para
atrás, ninguém entrando nem saindo, o mesmo anticlimax dos dias: sozinho,
sentado na mesa (a mesma de sempre), observo o movimento de saída dos últimos
clientes. Sigo na linha morna dos acontecimentos que preenchem a minha vida de
aposentado bem sucedido, e por isso relaxo na cadeira, descanso as mãos sobre a
elegância dessa toalha de mesa, afasto a xícara, remexo nos talheres e finalmente
chamo o meu garçom, por acaso o último a espanar as mesas já desocupadas deste
restaurante nobre da Zona Sul de Porto Alegre.
Tarde parada entre feriados. Somos poucos no restaurante a essa hora, mas
não posso deixar de notar que o único parceiro de contato visual neste cenário
descampado ainda continua ali, sentado, o olhar crispado para mim: ele, o homem
do banco. O segurança que fica na entrada
desse bistrô abrindo e fechando a porta para os clientes e
frequentadores. Eu não me encaixo em nenhuma das duas categorias: sou como os
móveis e utensílios da casa, um pouco invisível em meus pedidos, pouco
originais e quase sempre repetitivos. De onde estou, observo-o; mas confesso
que conversamos pouco, um escapada de olhar na chegada, bom dia, educação e nada mais. Há verdadeiramente um muro entre
nós, e são poucas as vezes nesses anos em que ele se aproximou da bancada que
divide o hall de entrada das primeiras mesas do lado oeste, próximo à saída,
onde estrategicamente me sento. Dali observo tudo – e é impossível não deixar
de notar o muro que nos divide.
De certa forma invejo o homem do
banco, sentado como está desde às 11 da manhã. Também reparo como
ele costuma ficar observando, canto de olho, as beldades deste bairro ao longo da hora do almoço, e elas entram e saem,
minuto a minuto, a desfilar suas belezas, cheiros e formas. Ficando longe, mas
logo tão perto, quieto, deixo-me a pensar na sorte daquele sujeito rude (sua
simpatia tem hora marcada), mas não invejo sua posição neste tabuleiro de
vaidades senão a condição privilegiada que dispõe de poder enxergar paisagem por
entre coques, vestidos e disposições musculares. Lembro: estamos chegando ao alto
verão das liberdades individuais reprimidas.
O muro, contudo, nos separa. E fico
a imaginar que enquanto ele provavelmente chegará em casa com seu cansaço e
pouca disposição, à mesa das oito da noite encontrará o jantar feito, depois
novela a dois e por fim os romances escusos debaixo do lençol. A pensar ele,
quem sabe, nas longas clavículas, trocadilhos de pernas torneadas, desafios
esculturais localizados naquelas moça a entrar e sair deste restaurante / café
/ bistrô em rua apertada do Bairro Tristeza. Enquanto do outro lado do muro
fico a imaginar o destino de tantas visualizações não compartilhadas que a mim
não mo são permitidas, e digo logo que não são por falso pudor ou romances
tresnoitados, mas por pura falta de opção com quem dividir tamanha tara
acumulada.
Sentado no muro, aquele segurança
percorre agora os olhos pelos salões vazios, consulta seu relógio barato e
finalmente me olha pela segunda e última vez, desde que cheguei. É a sua senha
para indicar que a minha permanência por ali se esgotou; devo então levantar, e
depois meia dúzia de passos, pagar a minha conta. Na saída, é muito difícil que
eu venha olhar para ele, afinal neste derradeiro trajeto prefiro a secura de sorriso
frio, talvez um breve aceno, erguer o braço, apenas um movimento impessoal, retórico,
balançando o ar lá fora, como se fosse uma contrariedade, com certeza um adeus
ao prédio do restaurante, não a ninguém em específico. Jamais faria isso. Afinal,
há o muro.
O muro e foda-se.
O muro e foda-se.
Dezembro de 2018.
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