segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O homem do banco (sentado no muro)


            Na calmaria desta meia-tarde de quase-verão, mexo os talheres da sobremesa e sorvo os últimos instantes do meu café. Sei. São quase três horas da tarde e daqui a pouco alguém me cutuca para lembrar que está na hora de o restaurante fechar. Sempre assim. Desde minha precoce aposentadoria, depois que os filhos foram embora e também ela não achou nenhum motivo para dividir a casa e tudo-lá-que-seja comigo. Restou as memórias do banco, chefia, fluxo cambial, contratos fechados no temor das últimas horas, o grande stress de fim de ano. Agora aqui: no último almoço do ano, faço o balanço do diferido.
            Alguém realmente me chama:
            – Três horas, Doutor Vicente. Vamos fechar.
            Fico me enrolando com as últimas réstias de café, a pequena torta antes consumida, o almoço já ficara horas para atrás, ninguém entrando nem saindo, o mesmo anticlimax dos dias: sozinho, sentado na mesa (a mesma de sempre), observo o movimento de saída dos últimos clientes. Sigo na linha morna dos acontecimentos que preenchem a minha vida de aposentado bem sucedido, e por isso relaxo na cadeira, descanso as mãos sobre a elegância dessa toalha de mesa, afasto a xícara, remexo nos talheres e finalmente chamo o meu garçom, por acaso o último a espanar as mesas já desocupadas deste restaurante nobre da Zona Sul de Porto Alegre.
            Tarde parada entre feriados. Somos poucos no restaurante a essa hora, mas não posso deixar de notar que o único parceiro de contato visual neste cenário descampado ainda continua ali, sentado, o olhar crispado para mim: ele, o homem do banco. O segurança que fica na entrada  desse bistrô abrindo e fechando a porta para os clientes e frequentadores. Eu não me encaixo em nenhuma das duas categorias: sou como os móveis e utensílios da casa, um pouco invisível em meus pedidos, pouco originais e quase sempre repetitivos. De onde estou, observo-o; mas confesso que conversamos pouco, um escapada de olhar na chegada, bom dia, educação e nada mais. Há verdadeiramente um muro entre nós, e são poucas as vezes nesses anos em que ele se aproximou da bancada que divide o hall de entrada das primeiras mesas do lado oeste, próximo à saída, onde estrategicamente me sento. Dali observo tudo – e é impossível não deixar de notar o muro que nos divide.
            De certa forma invejo o homem do banco, sentado como está desde às 11 da manhã. Também reparo como ele costuma ficar observando, canto de olho, as beldades deste bairro ao longo da hora do almoço, e elas entram e saem, minuto a minuto, a desfilar suas belezas, cheiros e formas. Ficando longe, mas logo tão perto, quieto, deixo-me a pensar na sorte daquele sujeito rude (sua simpatia tem hora marcada), mas não invejo sua posição neste tabuleiro de vaidades senão a condição privilegiada que dispõe de poder enxergar paisagem por entre coques, vestidos e disposições musculares. Lembro: estamos chegando ao alto verão das liberdades individuais reprimidas.
            O muro, contudo, nos separa. E fico a imaginar que enquanto ele provavelmente chegará em casa com seu cansaço e pouca disposição, à mesa das oito da noite encontrará o jantar feito, depois novela a dois e por fim os romances escusos debaixo do lençol. A pensar ele, quem sabe, nas longas clavículas, trocadilhos de pernas torneadas, desafios esculturais localizados naquelas moça a entrar e sair deste restaurante / café / bistrô em rua apertada do Bairro Tristeza. Enquanto do outro lado do muro fico a imaginar o destino de tantas visualizações não compartilhadas que a mim não mo são permitidas, e digo logo que não são por falso pudor ou romances tresnoitados, mas por pura falta de opção com quem dividir tamanha tara acumulada.
            Sentado no muro, aquele segurança percorre agora os olhos pelos salões vazios, consulta seu relógio barato e finalmente me olha pela segunda e última vez, desde que cheguei. É a sua senha para indicar que a minha permanência por ali se esgotou; devo então levantar, e depois meia dúzia de passos, pagar a minha conta. Na saída, é muito difícil que eu venha olhar para ele, afinal neste derradeiro trajeto prefiro a secura de sorriso frio, talvez um breve aceno, erguer o braço, apenas um movimento impessoal, retórico, balançando o ar lá fora, como se fosse uma contrariedade, com certeza um adeus ao prédio do restaurante, não a ninguém em específico. Jamais faria isso. Afinal, há o muro.
          O muro e foda-se.

Dezembro de 2018.

0 ComentÁrios:

Postar um comentário

<< Home