quinta-feira, 5 de julho de 2018

O rapaz da limpeza


Tenho reparado naquele rapaz da limpeza, esse que vejo, de longe, sair de sua sala todas os dias e pontualmente às nove horas da manhã abre uma conversa animada com as senhoras que fazem a faxina no andar. Desconfio tanto da conversa como da limpeza (nosso andar anda muito sujo); fico impressionado mesmo como de sua disposição em falar tanto com aquelas trabalhadoras invisíveis que quase ninguém nota, ignora, nem cumprimenta ou parar para ver. Ele está ali, escorado no umbral da porta de seu departamento; gesticula e fala. Pouco ou quase nada consigo compreender do que ele diz, como ele fala porque sua voz é nasalada e me irrita; também me aborrece sua temática abusiva, a insinuar balançar nos gestos um falso brilho e interesse dos seres que sempre se colocam acima dos outros, fazendo isso com uma arte incomum a demonstrar um suposto sentimento de surpresa (e espanto) com a rotina, a vida sofrida e o sofrimento daquelas gentes úmidas. Tudo me parece molhado neste instante neste corredor fechado, lugar escuro e espantoso, e não, digo, não pelo o dia lá fora, assustadoramente frio, que estou a me lembrar dessa frieza comum de sentimentos, porque independente disso rumo em direção ao pequeno grupo formado na porta da sala, onde o rapaz da limpeza descasca seus falsos elogios – sei porque é ele mesmo que depois faz as queixas do trabalho delas à administração – então eu passo lento por entre os que se encontram parados e reparo na pequena arrogância do rapaz, a dizer, “eu também já limpei a sujeira dos outros”, o que me parece uma grande mentira. Eu sim, eu sinto minhas narinas eternamente embebidas em água sanitária, o tato e o olfato que perdi em baldes e baldes de limpeza e agora esse pequeno ser abominável quer tirar o meu lugar, desta maneira capa-gabardine-bem-intencionado que se mostra a elas muito bem-vestido (e sempre superior) quer porque quer se aproximar de forma muito rápida daqueles subalternos suburbanos, e vejo nisso um falso interesse, um elogio decadente e caindo aos pedaços de sua voz nasal e mambembe dele que fala – e sempre posto e parado no limite de sua sala, ele fala, sugere, e nisso se imiscui nos meandros do falatório geral das senhores, que riem e riem e riem. Quero muito dizer: “eu, sim, já trabalhei com isso”, mas a lembrança de meu passado não é algo que esta posição, terno, etiqueta, momento, memória, distância me permitam, então passo rápido em passos largos (mas sempre bem calculados para dar tempo de verem:) e nem olho, mas todos me olham, sigo adiante, rumo ao fim do corredor, banheiro, fuga, mas não vacilo; sigo em frente. Para mim, o passado é apenas um lugar no passado.

Julho de 2018.

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