O rapaz da limpeza
Tenho reparado naquele rapaz da limpeza, esse que vejo, de longe,
sair de sua sala todas os dias e pontualmente às nove horas da manhã
abre uma conversa animada com as senhoras que fazem a faxina no
andar. Desconfio tanto da conversa como da limpeza (nosso andar anda
muito sujo); fico impressionado mesmo como de sua disposição em
falar tanto com aquelas trabalhadoras invisíveis que quase ninguém
nota, ignora, nem cumprimenta ou parar para ver. Ele está ali,
escorado no umbral da porta de seu departamento; gesticula e fala.
Pouco ou quase nada consigo compreender do que ele diz, como ele fala
porque sua voz é nasalada e me irrita; também me aborrece sua
temática abusiva, a insinuar balançar nos gestos um falso brilho e
interesse dos seres que sempre se colocam acima dos outros, fazendo
isso com uma arte incomum a demonstrar um suposto sentimento de
surpresa (e espanto) com a rotina, a vida sofrida e o sofrimento
daquelas gentes úmidas. Tudo me parece molhado neste instante neste
corredor fechado, lugar escuro e espantoso, e não, digo, não pelo o
dia lá fora, assustadoramente frio, que estou a me lembrar dessa
frieza comum de sentimentos, porque independente disso rumo em
direção ao pequeno grupo formado na porta da sala, onde o rapaz da
limpeza descasca seus falsos elogios – sei porque é ele mesmo que
depois faz as queixas do trabalho delas à administração – então
eu passo lento por entre os que se encontram parados e reparo na
pequena arrogância do rapaz, a dizer, “eu também já limpei a
sujeira dos outros”, o que me parece uma grande mentira. Eu sim, eu
sinto minhas narinas eternamente embebidas em água sanitária, o
tato e o olfato que perdi em baldes e baldes de limpeza e agora esse
pequeno ser abominável quer tirar o meu lugar, desta maneira
capa-gabardine-bem-intencionado que se mostra a elas muito
bem-vestido (e sempre superior) quer porque quer se aproximar de
forma muito rápida daqueles subalternos suburbanos, e vejo nisso um
falso interesse, um elogio decadente e caindo aos pedaços de sua voz
nasal e mambembe dele que fala – e sempre posto e parado no limite
de sua sala, ele fala, sugere, e nisso se imiscui nos meandros do
falatório geral das senhores, que riem e riem e riem. Quero muito
dizer: “eu, sim, já trabalhei com isso”, mas a lembrança de meu
passado não é algo que esta posição, terno, etiqueta, momento,
memória, distância me permitam, então passo rápido em passos
largos (mas sempre bem calculados para dar tempo de verem:) e nem
olho, mas todos me olham, sigo adiante, rumo ao fim do corredor,
banheiro, fuga, mas não vacilo; sigo em frente. Para mim, o passado
é apenas um lugar no passado.
Julho de
2018.
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