Wyborowa
Deus é de fato injusto, penso nisto enquanto acaricio a garrafa de
Wiborowa gelada no fundo do
freezer. Fosse ele justo – esperança – não faria uma coisa
dessas: a garrafa quase vazia. E eu ajoelhado.
Acaricio o receptáculo de volume morto, feito imagem, e estou aqui
a pensar no que me levou a chegar a este ponto: a garrafa quase
vazia.
Penso nisso enquanto os joelhos doem, afinal o pequeno refrigerador
(este santuário) está localizado no piso mais baixo desta sala da
contabilidade onde me encontro.
Estou longe; estou num hospital.
Lembro.
Do hospital a me percorrer lembranças, aqueles instantes sob o
domínio dos aparelhos, recortes feitos estes pelos médicos, eles a
encontrarem aqui e ali, como depreciação acumulada, pequenos
objetos numa faixa extrema, incrustados neste órgão chamado
fígado.
Imagino o órgão, frio, quente, vazio, sobrecarregado. E enquanto a
minha mão revira a garrafa no fundo do compartimento gelado, imagino
o que seria dos outros, não os órgãos, mas corpos frios,
inexistentes, matéria descontinuada, que eu acompanhei deitados.
Estamos todos mortos.
Eles me lembram agora a oração contábil que fiz instantes atrás,
buscando diferenças e arriscando pensar no tempo que ainda me resta,
este bem de consumo próprio e sem vida útil. Quinze minutos, duas
horas? Daqui a pouco são quase dez horas da noite, e eu aqui, na
sala da contabilidade, com o braço dentro do freezer do pequeno
congelador em cujo interior onde é possível encontrar a garrafa
vazia de vodca e nenhuma esperança.
Deus não existe.
Deus – este nome proclamado por eles.
Penso neles, nos que foram: a mão gelada, a dor profunda, os
pensamentos embaralhando números e emoções, e já não há mais
nenhum órgão a gelar.
Estão todos gelados.
Eis meu estado de insanidade crescente que se revela quando penso na
diferença do balanço da coligada e no conteúdo do vasilhame (é
provável que não dê nem para as próximas duas horas – quiça
amanhã).
Amanhã é sábado, e eu não sei o que fazer com o dia longo de um
sábado.
Fevereiro
de 2019.
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