terça-feira, 31 de março de 2015

No gabinete do sono

São onze horas da noite.
Sentado à mesa central deste gabinete, formulo: até aqui fomos tão longe.
Excessiva e agora chegando ao seu derradeiro fim – milhas de distância percorridas –, a noite me escurece.
E mesmo sem saber o que vivemos juntos, exato dizer, sem saber até que isso, o algo mais simples seja dito: aqui estamos, aqui chegamos.
Muito caminhamos sozinhos, sem a ajula Dele – seja ele quem for – e em verdade vos digo: que para acreditar basta estar vivo.
Tampouco acredite que com dúvidas conseguirá algo.
Eis todos os clichês que me ocorreram às onze da noite.

Talvez por isso há que se registrar a minúcia desses inúteis movimentos que me cercavam então – e se tenho nesta pequena caderneta de bolso o meu alívio imediato, o certo é que o meu último gesto deverá ser mesmo este: abrir a gaveta da cômoda, retirando dali a pequena arma. Retiro. É um livro.
Livro do desassossego.
Em cujas páginas, percorrendo as margens do texto, ali, como pequenas glosas, encontro anotações, a letra dela, o nome dela; ao lado, uma pequena lista em iniciais tais:
A.P.C.
L.M.N
J.P.T.S.
M.L.
E.H.S.A.
As iniciais das tardes em que acordado intelectualmente no silêncio deste gabinete de leituras, eu escutava seus passos pelo quarto do casal, a arrumar-se; depois seu caminhar pelo chão de madeira de nossa residência, em seguida a me dar beijo na testa-tchau; horas depois, seu retorno sempre desprovido de explicações, com nosso jantar debaixo do braço, aquela mesa silenciosa a dois, eu avisando, vou escrever até mais tarde, subo, tudo bem?
Estarei meus dias no gabinete do sono.
Enquanto ela sempre na rua. Passeios. Liberdade em tarde de ar rarefeito. Primavera. No livro, aquelas siglas, muitas, outras pessoas, enquanto lá no gabinete eu a acreditar em teses e doutoramentos, lia vastos tratados e outros tantos manuais, na gaveta o desassossego, enquanto isso ela...
Ela era ela.

Agora essas iniciais a demonstrar a existência retilínea daqueles nomes, homens, brancos.
Que importa a cor se a noite é escura lá fora?
E que dia horroroso para saber ler.
Retiro a arma.

Gun.

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