quinta-feira, 9 de abril de 2015

Coragem

 Tão cedo e ainda noite dentro de mim.
Raymond Carver como fragmentos na minha cabeça. Monotonia. Caminhada a passos calculados. Pelas calçadas do Bairro Tristeza. A inutilidade das sacolas de supermercado suspensas pela mão como tentativa de dar algum sentido... Interrompido pensamento, num zás, pelo impacto fulminante. Dois carros à minha frente. Cruzamento. Pancada seca. O giro (do carro). O grito (do menino).
Correr ou ficar?
Recuo um passo, depois avanço dois.
Assim:

Hoje de manhã. Tal o acidente. Uma grande caminhonete avança em alta velocidade, cruza no sinal de PARE e colide na lateral de um pequeno ponto zero. Que roda. Isso tudo ali, no limiar da calçada à minha frente. Milésimos de segundo entre o choque, o carro girando em sentido horário e a minha reação. Que é absurdamente calma e instintiva, isso logo após ouvir o grito que se seguiu à batida. No carro atingido, certeza, há uma criança pequena que chora. O avô saiu, antes, nada nas mãos (vazias), a coçar insistentemente o pescoço, nem lembra do neto chorando lá dentro. Só do choque, pancada, pescoço. Fico na dúvida se reparo na preocupação dele com a coluna, ou se corro a acudir o ser indefeso. Que, estranho, quando lhe ofereço, aceita o meu colo – mas ele chora o pavor. E de repente a manhã é noite, e de noite passa ao brilho dos metais dos dois carros jogados na via de rolamento que olho por sobre o ombro da criança. E, súbito, já não é mais noite dentro de mim. Do outro carro, da grande van, sai uma mulher de uma certa idade indefinida, telefone móvel preso à mão, ela está linda na maquilagem perfeita, mas está triste. Ao mesmo tempo, reparo em seus braços. Dois tubos cheios de tatuagens soltos no ar. A pele, assim que consigo chegar perto e perguntar Tudo bem?, a pele tem o castigo dos bronzeamentos artificiais. Representa ter uns cinquenta anos dentro de trinta e cinco. Mas ela sai do carro arrasada, passo curto, trôpego, este lado, o outro, porque a culpa, sim, a culpa do óleo derramado na pista é dela. Ainda percebo que ela nos vê, ao velho, à criança, a mim, e ao mesmo tempo que olha, gira o corpo sobre os sapatos baixos (como reparar nesse movimento de balé a uma hora dessas) e depois de rodar, senta-se no meio-fio da calçada.

Assim:
Embalo a criança, único consolo.
A esta estranha fortaleza contida na minha ação, em cuja coragem encontro isto:
Noite.
Grito.
Por dentro estou a explodir com aquilo que o médico disse.
“Não parece bom.”
Eu vinha pensando, sacolas penduras à mão, na calosidade das calçadas, quando:

Coragem.

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