Gavetas
O aviso era para não entrar. Dizia na porta, em placa cravada pelo
tempo. Foi a curiosidade (ou alguma coisa que ele tinha que descobrir
sobre o irmão) que fez com que entrasse no quarto, depois abrisse as
amplas portas do roupeiro, algumas chaves arrombadas e contrapesos
retirados, gavetas vasculhadas, potes, caixas, pó, extravio e lá
dentro, no fundo do móvel e gasta pelo tempo, a coleção.
Por que o irmão fizera aquilo?
Primeiro aquela vida. Segredos. Anos e anos fumando. Tosse crônica.
Complicações. Doença diagnosticada. Grave. No hospital, um
pedacinho, fiapo, fim de vida. A família toda em estado de tensão
permanente. Naquele que seria o penúltimo dia de internação, o
irmão lhe chamou ao pé da cama, puxou-o com a força dos
moribundos:
– Entra lá.
A voz rouca, profunda, água escura, difícil de enxergar, impossível
escutá-lo; mesmo assim conseguiu compreender: eram as gavetas. A
coleção. O segredo compartilhado.
Os dias curtos. Prognóstico negativo. Sequência de exames,
resultados inúteis. Jamais conseguiu retornar ao hospital. Nunca
pode dizer ao irmão que entrara lá, que folheara a coleção, a
mesma, aquela, que utilizaram juntos, na flor da adolescência, agora
bem longe, o tempo se reduzindo, o tempo encerrado, esta linha órfão,
confissão, delírio ou memória?
Janeiro
de 2018
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