quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Gavetas

  O aviso era para não entrar. Dizia na porta, em placa cravada pelo tempo. Foi a curiosidade (ou alguma coisa que ele tinha que descobrir sobre o irmão) que fez com que entrasse no quarto, depois abrisse as amplas portas do roupeiro, algumas chaves arrombadas e contrapesos retirados, gavetas vasculhadas, potes, caixas, pó, extravio e lá dentro, no fundo do móvel e gasta pelo tempo, a coleção.
Por que o irmão fizera aquilo?
Primeiro aquela vida. Segredos. Anos e anos fumando. Tosse crônica. Complicações. Doença diagnosticada. Grave. No hospital, um pedacinho, fiapo, fim de vida. A família toda em estado de tensão permanente. Naquele que seria o penúltimo dia de internação, o irmão lhe chamou ao pé da cama, puxou-o com a força dos moribundos:
– Entra lá.
A voz rouca, profunda, água escura, difícil de enxergar, impossível escutá-lo; mesmo assim conseguiu compreender: eram as gavetas. A coleção. O segredo compartilhado.
Os dias curtos. Prognóstico negativo. Sequência de exames, resultados inúteis. Jamais conseguiu retornar ao hospital. Nunca pode dizer ao irmão que entrara lá, que folheara a coleção, a mesma, aquela, que utilizaram juntos, na flor da adolescência, agora bem longe, o tempo se reduzindo, o tempo encerrado, esta linha órfão, confissão, delírio ou memória?


Janeiro de 2018

0 ComentÁrios:

Postar um comentário

<< Home